29.2.20

AINDA NÃO ACABOU III





29 fevereiro |AINDA NÃO ACABOU | Prolongar uma história, um livro. 

3.ª exercício O MESMO FINAL
Todos temos o mesmo fim. Escolhemos uma forma de acabar e escrevemos para trás. 

Final comum: 

O amor tinha por fim enontrado o seu caminho de flores e de lâminas. 



A história daqueles dois era difícil de contar, de explicar, de assimilar.
Conheceram-se no velório de uma tia, que ambos gostavam muito, de maneiras diferentes, mas em comum o grande afeto que a tia lhes deu. Nesse triste dia cruzaram olhares profundos, para nunca mais se separarem.
Apesar desse início tão infeliz, a história dos dois era bonita, consistente, credível.
Juntaram os seus trapos, subiram ao altar e tiveram um filho.
Tudo parecia encaminhado para aquela trajetória sem desvios, para um “viveram felizes para sempre”.
Mas
 - e há sempre este “mas” nas histórias mais belas -
o destino dos dois não seria juntos. Anos depois, veio-se a saber que um deles tinha cometido o homicídio que levara à morte daquela tia.
Ela ficou aterrorizada com quem tinha a seu lado e nem as flores a convenceram a perdoá-lo. Não havia volta a dar aquela história.
O amor tinha por fim encontrado o seu caminho de flores e de lâminas.
                                                                                                                       Mariana Matias 



Sabia que já nada havia a fazer. Restava-lhe apenas lamber as feridas e partir. Sairia dali com pouca bagagem: meia dúzia de livros de poemas, um disco da Kate Bush da sua coleção de clássicos e uma ou duas peças de roupa. Nada mais. Não deixaria marcas. Não haveria despedidas. Já tudo tinha sido dito, vivido e sentido. Já se tinham esgotado todas as mentiras, todas as razões, todas as dúvidas. Todos os gestos eram agora inúteis, todas as palavras eram já objetos cortantes. Olhou uma última vez para a casa em silêncio antes de sair: já não sentia a brisa fresca do Verão no rosto e o Amor tinha por fim encontrado o seu caminho de flores e de lâminas.
                                                                                                             Rute Gonçalves


Levantava os olhos do microscópio, reparava nela, debruçada sobre a ocular ao mesmo tempo que tirava notas no seu caderno de folhas lisas, sem sequer olhar para o papel. Com uma mão ia fazendo deslizar a lâmina, rodando as lentes e ajustando o foco, com a outra escrevendo e por vezes até desenhando esquemas das suas observações, completamente absorta no seu trabalho. Ele julgava que tinha uma paixão única, muito particular, antes de a conhecer. Sempre gostara de plantas e tinha-se preparado para as estudar toda a sua vida como se pudesse vir a compreender o seu mistério observando-as nos mais pequenos detalhes. Agora percebia que a sua paixão tinha encontrado rival à altura na compenetrada botanista com quem partilhava o laboratório. Sorriu; o amor tinha por fim encontrado o seu caminho entre flores e lâminas.
                                                                                                              Francisco Feio


Ela queimava-se a todo o instante, de calor. A lareira estava já em brasa,o azul flutuava. 

Pedia alimento. Pedia madeira,,pedia almofada, pedia solidão, pedia sossego, pedia silencio, Ela não lhe fez a vontade. Já era de manhã. O seu filho devia estar a chegar. Apenas um galho florido. A qualquer momento.
Havia pouco tempo se estreara até ás madrugadas. Hoje não há lamento, sento---me com ele e à falta de pai, vou-lhe conversar o quanto o amo e que este amor tinha por fim encontrado o caminho de flores e de laminas.
                                                                                                                      Joana Dinis





AINDA NÃO ACABOU II


29 fevereiro |AINDA NÃO ACABOU | Prolongar uma história, um livro.

1.º exercício - prolongar uma história 

Hoje andávamos à volta do fim.
Primeiro, passámos para o outro lado, continuando uma história que todos conhecem: o Capuchinho Vermelho.
E se o lobo não tivesse morrido. Partimos das linhas:
- Para que tens a boca tão grande?
- É para te comer melhor!


...


Para que tens uma boca tão grande? É para te comer melhor.
A capuchinho vermelho estremeceu, acabara de perceber que aquela que tinha à sua frente não era a sua querida Avó e sim o lobo que havia visto momentos antes no bosque.
Pensou onde se encontraria a Avó depois daquele comentário petrificante e começou a correr para a porta da rua, mas o lobo levanta-se repentinamente, caindo-lhe a toca da sua doce Avó no chão. Repara então na grande barriga que o lobo tinha e compreende que ele a tinha dentro de si. Tenta alcançar a maçaneta da porta com rapidez mas o lobo, com as suas grandes patas felpudas atinge-lhe os ombros, começando por engolir-lhe a cabeça e depois o corpo. Cai, por fim, num grande poço pegajoso e encontra a Avó cheia de medo, a tremer. Percebem que nunca sairão dali vivas e abraçam-se com a força do mundo como se tal as salvasse de destino tão triste.
O lobo satisfeito, encosta-se no cadeirão da velhota e pensa em como era forte e como iam ficar os seus amigos surpreendidos por este grande feito.
Nisto, sente umas picadas fortes na barriga, como se fossem unhadas.
- Olha agora, estas duas, se isto já se viu!!
As unhadas começam a ganhar ainda mais força e quase que lhe rasgam as vísceras. Por fim, sente beliscões no esófago e uma mão na garganta e a Capuchinho Vermelho -  com toda a sua vivacidade dos seus oito anos - consegue escalar lobo acima. Mal consegue sair cá para fora, espeta-lhe nos olhos os dedos fininhos e este grita, indo contra os móveis. A capuchinho lança-lhe por fim uma faca e ele tomba no chão redondo. Ainda sem ter a certeza que ele está verdadeiramente morto, abre-lhe a barriga e a Avó amedrontada sai a correr.

Elas fogem para o bosque para nunca mais voltar a casas onde animais falam.
Mariana Matias


- Para me comer melhor? Ò diabo, tu queres ver que este é daqueles que gosta de seduzir meninas novas com idade para ser netas dele?
- Como assim para me comer melhor?? Olhe que eu não sou dessas…
O Lobo ficou baralhado e por uns segundos não reagiu… e disse: Mas o que é que estás prai a dizer rapariga? Anda cá que eu ainda tenho aqui um buraco não estômago, a tua avó não me matou a fome… faltas tu para completar a refeição…
Nesse momento, caiu-lhe a ficha… a sua querida avozinha estava no estômago daquele lobo malvado… tinha de fazer alguma coisa…
- Ó Sr. Lobo, tudo bem já que comeu a minha Avó, vou deixá-lo comer-me a mim também… mas primeiro vou-lhe fazer um chazinho para não ficar maldisposto; comigo e com a minha avó aí dentro vai ficar enfartado de certeza. O Lobo hesitou por um momento mas acabou por lhe dar razão. E assim a Menina correu para a cozinha para fazer uma poção mágica com ervas daninhas, que ia pôr o Lobo Mau com os bofes de fora. Foi certo… assim que o chá bateu no estômago, o lobo começou a vomitar sem parar e lá saiu a avozinha, um pouco amarela e esverdeada, mas viva e agradecida pela iniciativa da neta.
                                                                                      Rute Gonçalves


Percebendo o que se passava, Capuchinho sacou do cesto um ramo carregado de piri-piri que tinha apanhado pelo caminho e segurou-o com força. O lobo, tragou-a de uma só vez. Encontrou facilmente a avó, às voltas dentro da barriga do lobo. Abraçou-a com força e disse-lhe: agarra-te bem a mim, avó. Não demorou muito a que o lobo começasse a inchar, a arfar aflitivamente e as cuspisse com toda a força. Estava tão atrapalhado, que quando Capuchinho lhe abriu a porta e disse para sair, não percebeu que a porta era a do forno. Ainda hoje, por aquelas bandas, lobo com piri-piri é uma especialidade culinária muito apreciada.
                                                                              Francisco Feio









AINDA NÃO ACABOU I


29 fevereiro |AINDA NÃO ACABOU | Prolongar uma história, um livro. 

Exercício: fazer fins

COLECÇÃO DE FINS

E se começássemos pelo fim?
Finais supreeendentes, finais felizes, finais abertos, finais poéticos. Uma colecão a continuar, aqui alguns, à disposição de quem com eles quiser fechar uma história.



Então, depois de tantas lágrimas derramadas, percebe que o seu futuro seria longe dali, numa cidade qualquer distante.



Apesar de tudo, a minha alma estava agora mais leve e podia caminhar para onde sempre quis: a liberdade.
                                                                                                Mariana Matias


O telemóvel tocou.
Era o último toque.
Já não aguentava mais e a bateria estava fraca. Só ouviu: detesto-te.

Ela acabou por lhe trazer a camisola, a azul, onde ele se demorava com os olhos.
Surpresa.
Gostou. Era o que ele queria. Era o que ela queria.

Queimo-me a todo o instante. Acendo a lareira e o gosto do fogo embebeda-me.
Acabo aqui, e assim, o meu serão.

- Por isso e porque já são horas de ir andando, põe a trabalhar a montanha russa, o comboio e a roda gigante. Deixa o portão aberto e se te perguntarem, não sabes de nada!
                                                                                                                Joana Dinis



Morreu no dia 22 de Fevereiro, não tendo sido revelada a causa. As más línguas disseram que tinha mordido a sua.
Paula Carvalho


Apesar de tudo, a minha alma estava agora mais leve e podia caminhar para onde sempre quisera: a liberdade.

O dia amanheceu limpo e as andorinhas cantavam melodicamente. A Primavera chegara.
Mariana Matias


Pousou o livro de Kadaré e dispôs-se a reservar um bilhete baratuxo para a Albânia com alojamento num bunker, vista para o mar e um mini-mercado em frente. Era o seu sonho albanês. 

A projectada viagem a Marte ficara gorada. Apeser da agressiva campanha de marketing, não havia sustentáculo real para alimentasse. Um grande embuste. 
Lídia Lopes


Só o mar ficou, testemunha silenciosa do fim de um tempo. 

E é vê-los às voltas, como peões desatinados, cada um no seu mundo feito de impossíveis. 
Helena Campos


Tinha chegado o momdnto de partir, de deixar aquele espaço que tinha sido a sua primeira casa. Olhou em vlta, ia sentir saudades. Custou-lhe a saída, lenta e dolorosa. Esta muita luz lá fora. Sentiu o ar a entrar nos pulmões e berrou com força. «É um rapaz», alguem disse.

Então, depois de tantas lágrimas derramadas, percebeu que o seu futuro seria longe dali, numa qualquer cidade distante. 

Não sabia para onde ia, mas nunca mais voltaria aquele lugar. 

Abraçaram-se uma última vez e adormeceram.

E ficou a ver a esfera azul que tinha sido a sua casa a ficar cada vez mais pequena. 

A corrida tinha sido em vão. Ofegante sentou-se na borda do passeio e com as mãos a tapar os ouvidos chorou primeiro e riu depois. 
Francisco Feio


O amor tinha por fim encontrado o seu caminho de flores e de lâminas.

E enquanto ohava a chuva que caía intensamente lá fora, sorriu com a certeza de que a partir daquele momento nada seria como dantes.

Ao entrar naquela nave metálica de luzes brilhantes, soube que iria começar a maior aventura da sua vida.

Descia agora a rua com alegria com orgulho no seu feito, com o cabelo desgrelhado e a boca a saber a pastilha elástica de mentol.

Fechou os olhos cansados e lacrimejantes e gritou a plenos pulmões: Obrigada!
Rute Gonçalves


O avião partiu e Jorge ficou a pensar nas belas amizades que nunca têm início. 

Nada fazia prever aquele desfecho. Suspirou e continuou a cavar. 

Quem diria, a sua vizinha, sempre tão conservadora e formal. Carlos reflectiu e disse alto:
- Nunca conhemos verdadeiramente ninguém. 

Acabada a conversa, talvez a mais importante da sua vida, sentiu-se leve e finalmente percebeu.

Olhou para as cerejeiras. Os primeiros bagos começavam a despontar. Pensou que isso devia significar alguma coisa. 
Cristina Borges









15.2.20

QUE COISA



15 de fevereiro | QUE COISA! Histórias inspiradas em objectos.

Primeiro, e para aquecer, histórias de 100 palavras inspiradas no globo de vidro. 


Descobrir o mundo numa esfera
Trago no bolso um tornado guardado numa esfera de vidro. É um turbilhão colorido que se desenrola a partir de um dos polos, mas para dentro. Por onde quer que olhemos, lá está ele, suspenso no tempo, como se tivesse sido fossilizado num momento preciso da sua evolução.
Desconfio que à noite, quando não estamos a olhar, ele ainda se move lentamente. Como a nossa memória das tempestades é curta, ele parece o mesmo todos os dias, mas, como se sabe, os tornados não sabem ficar imóveis. A minha esfera é um pequeno universo de fenómenos meteorológicos que trago no bolso.
Francisco Feio


Ela atirou-a ao ar e num de repente tudo o que era esfera se desfez no fundo até que se descobriu o mundo dela.
Afinal e na tranquila verdade virada ao contrário  transparecia o Oceano, um dos dela, ao calhas que calhou no tal…o mundo dela. O seu mundo de então.
Na alga salgada se demorou...minúscula então. Até ínfima diria e o infinito tão lá no ar a respirar sentimentos indolores.
Óbvio o tempo escapa mas cabe todo numa mão se o quisermos receber se o embalarmos no nosso colo até sentirmos o cabelo crescer.
Joana Dinis


Talismã
Saíu de casa com pressa, como todos os dias. Chovia aquela chuva miudinha, que incomoda e
que nos faz desejar nunca ter saído da cama. São 7.30H da manhã. Devia ser proibido o mundo
acordar tão cedo. Despertar lá para o meio-dia era mais do que suficiente. Também podia ser
Verão a ano inteiro. Era fevereiro e o Inverno era já um castigo insuportável.
Refletiu por um segundo que naquele pouco tempo após sair de casa, só tinha tido
pensamentos desagradáveis: parecia um livro de reclamações. Levou a mão ao bolso num
movimento rápido; lá estava a sua esfera de cristal, o seu pequeno talismã da sorte, pesado e
mudo, pronto a operar milagres.
Sorriu pela primeira vez naquela manhã. Estava protegida.
Rute Gonçalves


Uma esfera de vidro transparente estava sentada num banco de jardim.
Veio um senhor velhinho e sentou-se a lado dela. Pegou-lhe e as mãos encarquilhadas contrastaram com a superfície lisa e esticada da esfera. Levantou os olhos. As pupilas dilataram e reflectiram a luz do globo. As pálpebras de baixo encharam-se de lágrimas. Eram bem visíveis ampliadas pela superície redonda.Aproximou-se mais, da esfera, da luz, da casa, do avô no pomar, da professora da escolha, dos colegas da tropa. Estendeu a mão para tocar na esposa, ainda nova, a fazer a trança que sempre usou. Levou a memória dos sentidos e do seu coração e continuou a avançar, entrando cada vez mais, cada vez mais fundo. 
E uma esferça de vidro com uma névoa rosa ficou sentada no banco de jardim. 




Depois: escrever uma história baseados no mesmo objecto. Por onde começar...? Fomos atirando primeiras frases para o ar, para o quadro. O consenso escolheu uma:

O Manel tinha um olho de vidro



O Manuel tinha um olho de vidro. Tinha-o encontrado há muitos anos numa loja de curiosidades bizarras numa viela escondida na cidade onde vivia. Costumava passar pela loja a caminho de casa e parava por lá, diariamente, para dar uma vista de olhos pelos objectos e ouvir as histórias fantásticas, quase todas inventadas, com que o dono do estabelecimento tentava interessar os clientes.
Descobriu-o quase por acaso, numa gaveta de um velho móvel que, segundo o dono da loja, tinha vindo diretamente dos aposentos do capitão de um navio de piratas que tinha andado pelos mares do oriente. O próprio dono ficou espantado pois não tinha dado conta daquele estojo, forrado a veludo azul, que guardava no seu interior tamanha bizarria. Ainda lhe tentou vender o móvel dando o estojo de presente, mas acabou por ceder e ficou com o móvel e o Manuel com o estojo.
À noite, antes de dormir, passava algum tempo a observar cuidadosamente aquele objeto, a admirar a sua perfeição e textura. Numa dessas noites, pousou-o no estojo e adormeceu. Acordou com uma sucessão de luzes que pareciam pairar no ar e percebeu que irradiavam da esfera de vidro e projectavam-se pelas paredes à sua volta. Era uma sucessão de imagens de lugares distantes, desconhecidos, de mares solitários, de lutas sangrentas, de objectos de todas as formas e cores, de homens e mulheres, de paisagens despovoadas, de cenas de amor e ódio, que terminavam com o gume de uma espada a vir veloz em direção a si. Depois ficava escuro e as imagens desapareciam.
Percebeu que sempre que caía a noite e o mundo adormecia, se deixasse o estojo aberto, as imagens repetiam-se, umas vezes iguais, outras diferentes, mas terminavam sempre do mesmo modo: a espada e a noite escura que se lhe seguia. Agora tinha a certeza que o objecto mais fantástico de todos tinha escapado ao vendedor. Ali estava, na sua sala, dentro de um estojo de veludo azul, o olho que guardava todas as memórias de um velho capitão de um navio pirata, interrompidas abruptamente por um golpe de espada do destino. ​
Francisco Feio


O Manel tinha um olho de vidro e por isso nunca chorava. Não lhe fazia sentido nenhum
chorar apenas de um olho… quando se tem de chorar, ou é a sério ou então nem vale a pena.
Por isso decidiu que nunca mais voltaria a chorar.
O olho era, sem dúvida um artefacto curioso: uma pequena esfera brilhante, que se fundia
perfeitamente com a sua cara; um olho quase perfeito, tecnologia de ponta, dos mais caros do mercado. Quando alguém lhe perguntava o preço daquele peça quase mágica, a primeira coisa que sempre lhe ocorria era responder que lhe tinha custado os olhos da cara, mas nunca o fazia…achava sempre que era uma piada parva e que ninguém iria achar graça. É que isto de fazer piadas com deficientes tem muito que se lhe diga. Para além disso, ter um olho de vidro topo de gama que não lhe devolveu a visão é já por si, piada suficiente.
Dava por si muitas vezes, a pensar nestas ironias da vida e não sabia o que era pior: se ter um olho que não vê, se ser um homem que não chora.
Rute Gonçalves



O Manel tinha um olho de vidro que lhe calhou numa rifa da feira amontoada daquela Vila. A Vila tagarelava, toda a Vila fervilhava sempre que se aproximava a época das crinas, dos rabos de cavalo, das tranças, das danças, dos cheiros, das multidões e dos estrangeiros.
O olho do Manel precisava de ver...senão não lhe tinha saído, logo a ele ao Manel, na rifa da barraquinha dos invisuais lá estabelecidos  para angariarem fundos para a associação à qual o Manel se dirigirá com a melhor das suas intenções. Tratava-se de solidariedade, mas jogando pelo seguro, pois que isto deus não dorme e o diabo não descansa, portanto logo a ferradura para a sorte, não podia rasgar nem em pensamento um sinal de mau agoiro naquele olho.
Solidariedade mas não tanta, bendita ferradura! Água benta!!Bebida!!! Já vai a caminho disse logo o empregado, um jarro tinto. Ah pois é e agora? Olho de vidro que precisa de ver, ferradura bem comprada. Tinto Só e companhia ilimitada. A feira avançava o vinho escorregava. Musica, chapéus ui que começa o carrossel da mona no Manel. Abram alas que quem tem olho é Rei e o Manel na sua crendice e o lugar do olho para que veja é no meio da testa começa e consegue terminar e auto proclama-se de curandeiro. Principal parceiro? Dr. Google de Janeiro a Janeiro, não encerra mas contém encerrados todos os segredos bem guardados!
Joana Dinis


O Manel tinha um olho de vidro. Tinha pertencido ao bisavô, que lutara na batalha de La Lys. Já não se lembrava, mas a avó ainda contava a história: ele com uns 5 anos a aparecer com este troféu na sala de estar. O pai, a mãe, a avó e a tia a tentar agarrá-o, a puxar, até o olho rolar para debaixo de um aparador. Na nesga que separava o móvel do chão só cabia o braço de uma criança. Deitado no chão, o Manel via o olho a fitá-lo, a chamá-lo com um brilho azulado. Nunca mais se separaram. Na escola colocava o olho na secretária - e quando alguém se lembrava de fazer troça, o olho fixava o provocador com um olhar tão longo, tão frio, tão azul, que causava arrepios. Por isso cresceu sem oponentes. Agora que era o mais jovem director do banco, o olho fazia-lhe companhia nas reuniões do conselho de administração. Esta estava a prolongar-se. Manel olhava fascinado para a mãos calçadas de luvas brancas de uma pele brilhante e rija da mulher do outro lado da mesa. As mãos falavam e falavam. Estava tão hipnotizado que nem reparaou que a votação terminara e a proposta dela tinha  sido aprovada em desfavor da sua. Era a primeira vez que se distraía assim. Virou-se para a janela e de costas ficou à espera que a sala ficasse em silêncio. De repente, algo rolou na mesa. Voltou-se: era o seu olho de vidro que rolava para junto de mão calçada de luva branca. Os dedos apertaram a esfera. O dedos daquela mão branca. A mão postiça que a mulher deixara ficar em cima da mesa. 
Cristina Borges



1.2.20

OLHA E ESCREVE.


1 de fevereiro | OLHA E ESCREVE. Histórias inspiradas em imagens.


A partir de textos do Atlas do Corpo e da Imaginação, de Gonçalo M. Tavares com imagens dos Espacialistas:

Linhas de escrita:

Olhar e escrever a/sobre a imagem sem fazer legenda.
Resistir a contar a história linear.
Tentar fazer (com) o texto o mesmo que se fez para criar a imagem.

Escritos


Proposta 1: continuar o texto seguinte, escrevendo por pontos:


in, Atlas do Corpo e da imaginação






3. A casa é uma imagem de ti. Contém os teus segredos e manias e fala de ti com todos os seus recantos.

4. Esse carimbo que levas no pé ajusta-se às tuas marcas digitais e ganha espaço no mundo a cada passo que dás.
                                                                                                          Mariana Matias


3. Ou: será que a tua casa também não é a tua marca, não será também ela um poema, com o teu cheiro e a tua forma?
4. Sem dúvida que os poemas também deixam marcas, e as marcas podem ser caminhos e os caminhos podem não chegar a lado nenhum…
5. Ou: se não chegares a lado nenhum, também terás nada ou lado nenhum colado aos pés? Como as casas?
                                                                                                         Rute Gonçalves


3. Nada e longe muito a léguas de distância fica o interessante e disperso património carimbado.
Tudo a teus pés.
4. Ou aproveitar o que a. Vida nos planeou, revivendo e reinventando o futuro em bruto, ou internamente a sofrer pelos pontapés que ja não existem.
5. Habituas-te é como tudo na vida: Gosta-se não se gosta...
                                                                                                            Joana Dinis


3. O pé deita-se na casa, mesmo que tu já não te deites nela. Isto é um pouco poético, mesmo sem intenção. É uma metáfora.
4. Os pés descalços não se ouvem na casa. Quando não ouvimos caminhar, houve caminho? Velha pergunta ainda perguntada.
5. Ter um só pé angustia-nos. No entanto, as crianças riem muito a saltar ao pé-coxinho. Uma pegada pede dois pés?
                                                                                                       Cristina Borges



Proposta 2:  escrever sobre a imagem da capa do livro:




O que são os pensamentos, senão um conjunto de papéis escrevinhados e rabiscados repetidamente? Não será um amontoado de folhas de papel que são impressos à velocidade de uma ligação cerebral momentânea? E que se vão guardando ou perdendo no buraco negro da mente?
Pensamentos que vão e vêm, palavras escritas e sublinhadas a fluorescente, ou números a lápis ilegivelmente escritos, consoante a importância no espaço que é o nosso ser.

Imagine-se este metade humano, metade livro que se vai arrumando com folhas dispostas ordenadamente quando se encontra em momentos sérios e eloquentes ou em desordem gráfica quando há barulho dentro de nós?
Mariana Matias

A cabeça pende-lhe para a frente, como se lhe pesasse o cérebro. Visto de lado, não parece humano. Não se vêem os olhos, nem o nariz, nem a boca. A cabeça é enorme e está coberta de papel branco, espesso, completamente amarrotado, como se alguém inicialmente quisesse ter esculpido uma nuvem, mas sem sucesso. Em vez disso, em vez de uma cabeça coberta de nuvens (que bonito conceito), saiu uma cabeça de papel amarrotado. O resto do corpo não sabemos se existe. Não se vê, pelo menos. Deste lado da sala, apenas vejo uma cabeça de papel amarrotado que parece que flutua, porque não tem pernas, nem pés, nem nenhuma outra forma de suporte. Admito que é um pouco perturbante. Mas ao mesmo tempo é bonito.
Sempre gostei de amarrotar papel. Dá-me sempre uma certa esperança: como se fosse possível criar um novo começo.
                                                                                                      Rute Gonçalves


Berro o grito amarfanhado e desconstruído do tudo que foi até agora...
Está tudo livre afinal.

Já se ouve a voz. Desconcertante. Penetrante. Iminentemente apaziguada ou a caminho do nada. É tudo o mesmo…  em nada é muda. É mesmo a muda que não Muda. Ao contrario.
Imagino em imagens. Imagino em promessas. Imagino no fundo em fantasias...
Posso ir a todo o lado sem me meter num papel. Só que depois fujo e ja não sei de mim.
Escrevo a muda que não muda, falo paz, berro conquistas!
                                                                                                                 Joana Dinis


Papéis amarrotados na cabeça podem ser rascunhos de pensamentos. Só que não se pode pensar em rascunho. O pensamento é. Não há esboço de pensamento, tentativa de pensamento, semi-pensamento. 
Pensamos com palavras. Mas há também o cheiro a sopa, ou a alecrim, ou a cama ao acordar, ou a chuva no chão. E há a dentada no pão com manteiga quando temos muita fome, azeitonas pretas e verdes, maçãs de bravo. Ainda, a sirene dos navios no Tejo, a vizinha a chamar o cão que se chama Ruby, o eléctrico de ontem, o telefone a tocar. Já para não falar do vento, dos carros, das pessoas, das ondas do mar para a frente e para trás. 
Podíamos pensar com cheiros, ou sabores, ou até utensílios domésticos. 
Mas parece que só sabemos pensar com palavras. 
                                                                                                                   Cristina Borges