15.2.20

QUE COISA



15 de fevereiro | QUE COISA! Histórias inspiradas em objectos.

Primeiro, e para aquecer, histórias de 100 palavras inspiradas no globo de vidro. 


Descobrir o mundo numa esfera
Trago no bolso um tornado guardado numa esfera de vidro. É um turbilhão colorido que se desenrola a partir de um dos polos, mas para dentro. Por onde quer que olhemos, lá está ele, suspenso no tempo, como se tivesse sido fossilizado num momento preciso da sua evolução.
Desconfio que à noite, quando não estamos a olhar, ele ainda se move lentamente. Como a nossa memória das tempestades é curta, ele parece o mesmo todos os dias, mas, como se sabe, os tornados não sabem ficar imóveis. A minha esfera é um pequeno universo de fenómenos meteorológicos que trago no bolso.
Francisco Feio


Ela atirou-a ao ar e num de repente tudo o que era esfera se desfez no fundo até que se descobriu o mundo dela.
Afinal e na tranquila verdade virada ao contrário  transparecia o Oceano, um dos dela, ao calhas que calhou no tal…o mundo dela. O seu mundo de então.
Na alga salgada se demorou...minúscula então. Até ínfima diria e o infinito tão lá no ar a respirar sentimentos indolores.
Óbvio o tempo escapa mas cabe todo numa mão se o quisermos receber se o embalarmos no nosso colo até sentirmos o cabelo crescer.
Joana Dinis


Talismã
Saíu de casa com pressa, como todos os dias. Chovia aquela chuva miudinha, que incomoda e
que nos faz desejar nunca ter saído da cama. São 7.30H da manhã. Devia ser proibido o mundo
acordar tão cedo. Despertar lá para o meio-dia era mais do que suficiente. Também podia ser
Verão a ano inteiro. Era fevereiro e o Inverno era já um castigo insuportável.
Refletiu por um segundo que naquele pouco tempo após sair de casa, só tinha tido
pensamentos desagradáveis: parecia um livro de reclamações. Levou a mão ao bolso num
movimento rápido; lá estava a sua esfera de cristal, o seu pequeno talismã da sorte, pesado e
mudo, pronto a operar milagres.
Sorriu pela primeira vez naquela manhã. Estava protegida.
Rute Gonçalves


Uma esfera de vidro transparente estava sentada num banco de jardim.
Veio um senhor velhinho e sentou-se a lado dela. Pegou-lhe e as mãos encarquilhadas contrastaram com a superfície lisa e esticada da esfera. Levantou os olhos. As pupilas dilataram e reflectiram a luz do globo. As pálpebras de baixo encharam-se de lágrimas. Eram bem visíveis ampliadas pela superície redonda.Aproximou-se mais, da esfera, da luz, da casa, do avô no pomar, da professora da escolha, dos colegas da tropa. Estendeu a mão para tocar na esposa, ainda nova, a fazer a trança que sempre usou. Levou a memória dos sentidos e do seu coração e continuou a avançar, entrando cada vez mais, cada vez mais fundo. 
E uma esferça de vidro com uma névoa rosa ficou sentada no banco de jardim. 




Depois: escrever uma história baseados no mesmo objecto. Por onde começar...? Fomos atirando primeiras frases para o ar, para o quadro. O consenso escolheu uma:

O Manel tinha um olho de vidro



O Manuel tinha um olho de vidro. Tinha-o encontrado há muitos anos numa loja de curiosidades bizarras numa viela escondida na cidade onde vivia. Costumava passar pela loja a caminho de casa e parava por lá, diariamente, para dar uma vista de olhos pelos objectos e ouvir as histórias fantásticas, quase todas inventadas, com que o dono do estabelecimento tentava interessar os clientes.
Descobriu-o quase por acaso, numa gaveta de um velho móvel que, segundo o dono da loja, tinha vindo diretamente dos aposentos do capitão de um navio de piratas que tinha andado pelos mares do oriente. O próprio dono ficou espantado pois não tinha dado conta daquele estojo, forrado a veludo azul, que guardava no seu interior tamanha bizarria. Ainda lhe tentou vender o móvel dando o estojo de presente, mas acabou por ceder e ficou com o móvel e o Manuel com o estojo.
À noite, antes de dormir, passava algum tempo a observar cuidadosamente aquele objeto, a admirar a sua perfeição e textura. Numa dessas noites, pousou-o no estojo e adormeceu. Acordou com uma sucessão de luzes que pareciam pairar no ar e percebeu que irradiavam da esfera de vidro e projectavam-se pelas paredes à sua volta. Era uma sucessão de imagens de lugares distantes, desconhecidos, de mares solitários, de lutas sangrentas, de objectos de todas as formas e cores, de homens e mulheres, de paisagens despovoadas, de cenas de amor e ódio, que terminavam com o gume de uma espada a vir veloz em direção a si. Depois ficava escuro e as imagens desapareciam.
Percebeu que sempre que caía a noite e o mundo adormecia, se deixasse o estojo aberto, as imagens repetiam-se, umas vezes iguais, outras diferentes, mas terminavam sempre do mesmo modo: a espada e a noite escura que se lhe seguia. Agora tinha a certeza que o objecto mais fantástico de todos tinha escapado ao vendedor. Ali estava, na sua sala, dentro de um estojo de veludo azul, o olho que guardava todas as memórias de um velho capitão de um navio pirata, interrompidas abruptamente por um golpe de espada do destino. ​
Francisco Feio


O Manel tinha um olho de vidro e por isso nunca chorava. Não lhe fazia sentido nenhum
chorar apenas de um olho… quando se tem de chorar, ou é a sério ou então nem vale a pena.
Por isso decidiu que nunca mais voltaria a chorar.
O olho era, sem dúvida um artefacto curioso: uma pequena esfera brilhante, que se fundia
perfeitamente com a sua cara; um olho quase perfeito, tecnologia de ponta, dos mais caros do mercado. Quando alguém lhe perguntava o preço daquele peça quase mágica, a primeira coisa que sempre lhe ocorria era responder que lhe tinha custado os olhos da cara, mas nunca o fazia…achava sempre que era uma piada parva e que ninguém iria achar graça. É que isto de fazer piadas com deficientes tem muito que se lhe diga. Para além disso, ter um olho de vidro topo de gama que não lhe devolveu a visão é já por si, piada suficiente.
Dava por si muitas vezes, a pensar nestas ironias da vida e não sabia o que era pior: se ter um olho que não vê, se ser um homem que não chora.
Rute Gonçalves



O Manel tinha um olho de vidro que lhe calhou numa rifa da feira amontoada daquela Vila. A Vila tagarelava, toda a Vila fervilhava sempre que se aproximava a época das crinas, dos rabos de cavalo, das tranças, das danças, dos cheiros, das multidões e dos estrangeiros.
O olho do Manel precisava de ver...senão não lhe tinha saído, logo a ele ao Manel, na rifa da barraquinha dos invisuais lá estabelecidos  para angariarem fundos para a associação à qual o Manel se dirigirá com a melhor das suas intenções. Tratava-se de solidariedade, mas jogando pelo seguro, pois que isto deus não dorme e o diabo não descansa, portanto logo a ferradura para a sorte, não podia rasgar nem em pensamento um sinal de mau agoiro naquele olho.
Solidariedade mas não tanta, bendita ferradura! Água benta!!Bebida!!! Já vai a caminho disse logo o empregado, um jarro tinto. Ah pois é e agora? Olho de vidro que precisa de ver, ferradura bem comprada. Tinto Só e companhia ilimitada. A feira avançava o vinho escorregava. Musica, chapéus ui que começa o carrossel da mona no Manel. Abram alas que quem tem olho é Rei e o Manel na sua crendice e o lugar do olho para que veja é no meio da testa começa e consegue terminar e auto proclama-se de curandeiro. Principal parceiro? Dr. Google de Janeiro a Janeiro, não encerra mas contém encerrados todos os segredos bem guardados!
Joana Dinis


O Manel tinha um olho de vidro. Tinha pertencido ao bisavô, que lutara na batalha de La Lys. Já não se lembrava, mas a avó ainda contava a história: ele com uns 5 anos a aparecer com este troféu na sala de estar. O pai, a mãe, a avó e a tia a tentar agarrá-o, a puxar, até o olho rolar para debaixo de um aparador. Na nesga que separava o móvel do chão só cabia o braço de uma criança. Deitado no chão, o Manel via o olho a fitá-lo, a chamá-lo com um brilho azulado. Nunca mais se separaram. Na escola colocava o olho na secretária - e quando alguém se lembrava de fazer troça, o olho fixava o provocador com um olhar tão longo, tão frio, tão azul, que causava arrepios. Por isso cresceu sem oponentes. Agora que era o mais jovem director do banco, o olho fazia-lhe companhia nas reuniões do conselho de administração. Esta estava a prolongar-se. Manel olhava fascinado para a mãos calçadas de luvas brancas de uma pele brilhante e rija da mulher do outro lado da mesa. As mãos falavam e falavam. Estava tão hipnotizado que nem reparaou que a votação terminara e a proposta dela tinha  sido aprovada em desfavor da sua. Era a primeira vez que se distraía assim. Virou-se para a janela e de costas ficou à espera que a sala ficasse em silêncio. De repente, algo rolou na mesa. Voltou-se: era o seu olho de vidro que rolava para junto de mão calçada de luva branca. Os dedos apertaram a esfera. O dedos daquela mão branca. A mão postiça que a mulher deixara ficar em cima da mesa. 
Cristina Borges



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