24.6.20

Escrever em bola de neve



20 de Junho | No solstício de Verão, escritas em bola de neve.


Para inspirar: um cadáver esquisito em dança





1. ÎLLOT – MOLLO

À medida que se escreve, cada um vai dizendo uma palavra em voz alta que todos têm de incorporar no texto





Manifesto Anti-Lockdown

Na Bíblia, primeiro era o verbo, no nosso caso, primeiro foi o lockdown: não sairás de casa … descontadas as vinte e sete excepções contantes de outras tantas alíneas da lei.
Passámos toda a Primavera confinados no confinamento do lar, a trabalhar em trabalho remoto, dito tele-trabalho. Sem sair.
Primeiro construímos a narrativa da segurança - não se usava máscara porque dava falsa sensação de segurança. Nem se faziam testes porque davam qualquer coisa que parece que também era falsa. Talvez fosse aquilo dos falsos positivos...
Não celebramos Páscoa e muito menos o dia da Mãe.
Tivemos, sim, cravos, discursos e festa na Assembleia, manif na Alameda, autocarros vindos de todo o lado, coreografias de Leni Riefenstahl.
E, de repente, Maio chegou e sem máscara não andarás e testar testarás.
E desconfinar desconfinarás, excepto nas dezassete excepções de outras tantas alíneas da lei.
Desconfinarás a bicas na baixa, a almoços no Bairro Alto, a espectáculos no Campo Pequeno em que os toureados fomos nós, o povão que come e cala – e parece que gosta.
Desconfinarás também na Praia da Rocha, tu de bikini, na espuma das ondas, os Men In Black de fato e gravata e sapato de polimento a calcar a areia.
Não se pode parar para pensar que não foi para estarmos confinados em prisão domiciliaria, a morrer de pobreza, solidão e tristeza, que se fez o 25 de Abril?
E, de repente, chegou o Verão.
                                                                                                    Paula Carvalho



Arte de morrer

Iam sem destino pela rua fora numa tarde quente de estio. O mar ao longe era um convite à evasão. Começaram a correr, os ténis leves a bater nos traseiros, até ao primeiro autocarro que encontraram. Atiraram-se para os assentos com a luz do solstício a invadir as janelas.
Quando o veículo parou, soltaram-se como massas pegajosas a escorrer para o areal. O mar agora perto a rugir como um leão na selva. Sentaram-se na espuma à espera das ondas. A maré descia, vazava na direcção do horizonte.
Olharam um para o outro e pensaram que a vida era aquilo, a arte de morrer. Estenderam-se na areia de olhos fechados, crianças balbuciavam ao longe, talvez um cão. O trabalho que dava morrer devagar. O som de um barco, talvez de um avião no céu sem nuvens.
Não construímos nada na vida – pensavam em uníssono. Porque a maré vazava naquele dia em vez de subir? Teria dado jeito. Até a maré estava em desacordo.
No passado, circulavam sapatilhas de borracha que se vendiam à entrada daquela praia, assim como tábuas de madeira que os velhos alugavam em busca de iodo para uma saúde débil
Agora, nem sapatilhas nem tábuas, restava uma praia pedregosa abandonada entre limos e algas. Abandonada como eles aos ventos do ocaso.
                                                                                                 Helena Campos









2. HISTÓRIA COLABORATIVA

A partir de nome de personagem, tique, ditado popular, cor e outros elementos escolhidos previamente pelos participantes.




Penélope costumava dizer que de bom grado deixava o bom gosto todo para os outros e que ela se bastava com ter o gosto de gostar de amarelo.
Tudo começou por acaso, que é como começa quase tudo, a mãe, costureira numa loja de vestir, trazia para casa, no fim de cada estação, os monos a que dava a volta e transformava em roupas decentes para Penélope e Ulisses, os gémeos que havia tido com Ambrósio, seu falecido – não porque ele se finara mas porque se finara o casamento – as cores claras e alegres, como o amarelo e o vermelho, eram para Penélope, as mais discretas – azul e verde (credo, escarro na parede!) para Ulisses. Mas, num Carnaval, Ulisses tivera direito a um fato azul e vermelho com o homem morcego estampado, enquanto Penélope se vestira de veludo azul, como a Pequena Sereia, aquela cuja verdadeira história nada tinha de Disney mas era sim um repositório de horrores e de violência de género – maldito Andresen, reflectia Penélope, enquanto coçava a cabeça, e que ainda bem que tudo se passara há umas décadas pois se fosse agora teria a pobre da mãe sido acusada de perpetuar estereótipos de género.
                                       Paula Carvalho



Algures na China
Os morcegos de dentes arreganhados eram um grande problema.
Gostava do azul do crepúsculo colado com a noite, do silêncio deserto do mercado nocturno, um vasto chão cheio de sangue coalhado, animais esventrados. Os dentes dos morcegos a faiscar no escuro.
Ambrósio circulava pelas sombras cosido com o negrume, ainda assim apanhou o vírus. Quem anda à chuva molha-se.
                               Helena Campos

 




                          Até já! Voltamos depois do Verão.                                 



 


8.6.20

Intertextos


6 de Junho |Aniversário Dia D. | Aliados e Invasões: intertextos.



Completa o poema
A partir as primeiras linhas dos versos do poema Lisboa, Adília Lopes

cidade branca semeada de folhas queimadas pela luz intensa que a ilumina;
cidade azul refletida na margem do rio que a atravessa;
cidade negra, mineira, de gente vestida de negro, que sai das galerias que cruzam as profundezas não iluminadas da cidade;
cidade lilás, onde não existem outras árvores que não jacarandás, e onde a primavera é eterna;
cidade dourada, perdida no meio da floresta onde o sol nunca se põe;
cidade prateada, onde é sempre noite, iluminada pelo reflexo da lua no grande lago que a rodeia.
  Francisco Feio


Cidade branca semeada de paredes nuas ao sol, sem uma só árvore de permeio
Cidade azul da minha infância perdida à beira Tejo
Cidade negra dos nossos sonhos submersos em cinza
Cidade lilás, rosa, roxa, púrpura das noites insones
Cidade dourada das eternas esperanças por concretizar
Cidade prateada ao fim da tarde de um dia de chuva
  Helena Campos



Cidade branca
Semeada de oásis rosa dos telhados.

Cidade azul,
Da cor do céu que espelha o mar.

Cidade negra
De abismos, poços e vertigens.

Cidade lilás em Maio,
O mês dos jacarandás.

Cidade dourada no Outono,
Talhada por douradores.

Cidade prateada,
Da prata cor da palavra.
                 Paula Carvalho



Cidade branca
Semeada da seiva das árvores abatidas para construí-la

Cidade azul
Céu sem nuvens das manhãs de primavera 

Cidade negra
Construída sobre os escombros da dor e da raiva dos que a erguerem, pedra a pedra

Cidade lilás
Crepúsculo eterno das noites de verão

Cidade dourada
Que reluz ao sol e esconde as marcas de seu passado sombrio

Cidade prateada
Dura como o metal que comprou todas as suas almas

Paulo Lima



Cidade Branca
Semeada de pó talco das flores

Cidade Azul
Aquela onde o mar e o céu se fundem num só

Cidade negra
Onde todos são de pele escura

Cidade lilás
Repleta de jacarandás

Ciadade dourada
Premiada de luz doce de fim de tarde

Cidade prateada
Onde há sempre essa névoa por cima de tudo

 Mariana Matias




Faço minhas as tuas palavras 

A partir do poema Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade.
Escrever apenas com as palavras do poeta.







Um sol estático
Não é poesia
O que pensas e sentes
Não aquece nem ilumina
Contempla as palavras.
Os poemas rolam num rio difícil.
Esperam ser escritos
Entre o espelho e a memória
  Francisco Feio


Trouxeste a chave? 
Sós e mudas, em estado de dicionário 
Refugiam-se na noite as palavras 
Trouxeste a chave? 
O que pensas e sentes ainda não é poesia 
A tua sepultada infância não era poesia 
Trouxeste a chave? 
Penetra surdamente no reino das palavras 
Os poemas esperam ser escritos 
Com o poder da palavra e do silêncio 
Trouxeste a chave? 

Helena Campos 



Os versos do verso versam 
Sobre prosas onde posam, prosando, 
As faces que são o verso dos versos, 
Faces com coroas que as coroam, 
Faces paralisadas,
em silêncio e desespero, 
Sepultadas na indiferença,
À espera de serem resgatadas. 

Paula Carvalho



Não faças versos
Não faças poesia
Não me reveles teus sentimentos
Não recomponhas tua sepultada e merencória infância
Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação
Penetra surdamente no reino das palavras
Chega mais perto e contempla
Repara
Espera
Tem paciência

Paulo Lima



Não faças versos sobre acontecimentos.
Nem me reveles teus sentimentos.
Trouxeste a chave?
(e seu poder de silêncio) 
elas se refugiaram na noite, as palavras

Espera que cada um se realize e consuma com o seu poder de palavra
ermas de melodia e conceito que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem 
(tua sepultada e merencória infância) 

Penetra surdamente no reino das palavras
Chega mais perto e contempla as palavras

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Mariana Matias




O terceiro autor
Com um livro da escolha de cada um, cruzar as linhas entre os dois autores.


Esses sonhos tornaram-se a melhor parte da minha existência. Quando adormecia, esperava que o corpo adormecesse e que o filme começasse. Nem dava por isso; de repente percebia que tinha começado entrando a meio da sessão. Que coisa monstruosa é o nosso passado, dizem os analistas mais pessimistas ou realistas conforme entendermos essas coisas. Nessa noite, dei comigo num quarto vazio. Observava através da janela, os jacarandás em flor. Era inverno e por isso fiquei intrigado com a cena onde involuntariamente era ator. O largo estava vazio, o chão ia ficando coberto pelas pétalas que tinham começado a cair como uma chuva lenta cai nas notes sem vento. Vi um velho de casaco verde avançar na minha direção. Parou, olhou em redor e levantou a cabeça em direção à minha janela. Reconheci-o imediatamente. Era eu.
 
Francisco Feio

(a partir do texto Hotel Melancólico, María Gainza)




Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
Já não tenho em mim quaisquer sonhos. Talvez tenha sempre sabido. Talvez tenha acalentado de forma voluntariamente uma ilusão interminável.
O destino a conduzir a carroça do tudo pele estrada do nada.
Falhei tudo mas talvez não houvesse saída em nenhum dos universos paralelos que poderia ter percorrido.
O tudo estava condenado ao nada. O tudo tinha o nada gravado nas entranhas como um gene condenado.
Serei sempre o da mansarda ainda que não more nela.
Serei sempre só o que tinha qualidades
O que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta.
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira.
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
O que sobrou foi insuficiência,
O que restou foi cinza premeditada.
O que ficou disto tudo foi uma vida amarrotada como um trapo velho arremessado ao chão.
Uma juventude estilhaçada
Um silêncio pasmado.

Fui uma promessa e falhei. 
Não fiz mais do que fumar a vida.

Helena Campos

(a partir do poema Tabacaria, Álvaro de Campos)







Silêncio

Com a aproximação do dia da minha festa de noivado, os silêncios tomaram conta da minha vida – da minha, da do meu futuro noivo e da daquele que com ele competia, silêncios feitos de sombras e de escuridão.

Na minha vida dupla nasceu a nova identidade de uma pessoa que me desabitou mas sem me deixar por um segundo, perseguindo-me, colando-se-me aos pés, à sombra, gritando-me remoques e críticas que eu sabia serem merecidas mas que nem por isso surtiam efeito.

Encontrávamo-nos todos os dias durante pelo menos duas horas, eu e o meu amante. Fazíamos o que fazem os amantes, com paixão que progressivamente se mesclava com o desespero que me consumia o corpo. Ele não sei, eu nem nesses momentos deixava de pensar na estranha em que me tornara, capaz de amar um e o outro, sem de nenhum querer abdicar.

À medida que o dia se aproximava, abraçávamo-nos com mais força, suávamos mais abundantemente. Passei a viver em função dessas duas horas diárias, antes era a espera, era a antecipação, durante era o transe, era o abandono, depois era o penoso recomeço duma contagem decrescente de horas, minutos, segundos, de um jejum que não redime porque vive e se alimenta do pecado, mas, apesar disso, jejum sério, tão sério que no dia do noivado no vestido cabiam duas, eu e a minha dupla, o que, parecendo adequado, não chegou para encher o vestido, que ficou abandonado e só no silêncio da sombra do quarto. Nós as duas partimos, outra vez uma, mas nem por isso feliz.

Paula Carvalho

(a partir de O Museu da Inocência, Orhan Pamuk) 





Depois, com o correr do tempo, dá-lhe e dá-lhe, o jogo se tornou mais brando. Havia passado a novidade e fomos aos poucos perdendo o interesse naquilo que, de início, nos parecera tão fascinante. Quase nos esquecíamos de jogar.

Já não se viam átomos novos: os que se perdiam não eram mais substituídos. Todos percebíamos que o que antes era uma diversão tornara-se um aborrecimento. Chegávamos de má vontade ao pátio para jogar.

Pfwfp também havia mudado. Tornara-se agressivo e mal-humorado. Já não o reconhecíamos. Ao invés de palavras afetuosas, tratava-nos afora com deboche e sarcasmo.

Alguns dias, não aparecia à hora costumeira. Eu o chamava e ele não respondia. Nenhum de nós queria admiti-lo, mas sabíamos que o havíamos perdido para sempre. E suportávamos a dor causada por sua ausência eventual porque tínhamos consciência de que a dor ainda maior de não tê-lo nunca mais seria insuportável.

Paulo Lima

(a partir de Jogos sem fim, in Todas as cosmicômicas, Italo Calvino)






Embora possa esquecer-se da origem
Nunca poderá esquecer as folhas caídas no chão onde se deitou tantas vezes debaixo daquela árvore
- Então tudo o que é puro
fica translúcido na sua mente, qual rio que reflete o azul e as mil cores do céu
Por fim, corrompeu os laços de amor
com aquela senhora tão bela que lhe aparecia nos sonhos e nas tardes quentes de Julho
- Mas nunca, nunca se esquece
Aquele olhar e doces gestos, e as suaves palavras que ele lhe sussurra e ele se deleita , divagando, calmo, mexendo-se de um lado para o outro, sempre com a esperança de estender a mão e a encontrar.
E, assim, tentaram fazer-se iguais aos Deuses.

Mariana Matias

(a partir de um poema de Friedrich Hölderlin)