26.5.20

Mapas, Viagens.


23 de Maio | Faz a viagem. | Escrever inspirados em mapas e viagens.



1.ª viagem: Pasárgada 



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo de um poeta
Lá tenho a minha verdadeira casa
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui deixo pouco
Lá tenho quase muito
Lá farei quase tudo
Lá provarei o sabor das laranjas azuis
Ouvirei o canto dos pássaros
E lá morrerei um dia
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada há de tudo quase nada
É outra civilização
Há uma árvore com uma sombra fraca
Lá sou o que não posso ser aqui
E tenho a sombra da árvore que quero
Vou-me embora pra Pasárgada
    Francisco Feio


Vou-me embora para Pasárgada 


Lá sou amiga de um velho monge
Lá tenho um Deus à minha espera

Vou-me embora para Pasárgada
Aqui estou condenada ao desterro
Lá tenho horizontes sem fim

Lá farei a juventude regressar
Lá provarei os vinhos mais doces
Ouvirei as músicas mais sublimes
E lá cantarei a canção do infinito

Vou-me embora para Pasárgada
Em Pasárgada há esperança e sonho
É outra civilização
Há rios e mares por descobrir
Lá sou livre
E tenho tudo o que quero
Vou-me embora para Pasárgada
     Helena Campos



Vou-me embora para Pasárgada.
Lá sou amigo dum pássaro,
Lá tenho tempo e liberdade.

Vou-me embora para Pasárgada.
Aqui sou o que querem que eu seja,
Lá sou eu, só eu, eu só.

Lá farei tudo ou não farei nada,
Lá provarei a doçura de apenas ser,
Ouvirei o chamamento da liberdade
e lá encontrar-me-ei.

Vou-me embora para Pasárgada.
Em Pasárgada há tudo o que eu quiser que haja,
É outra civilização.
Há tempo e silêncio e liberdade.
Lá sou a liberdade
E tenho todas as prisões que quero.
Vou-me embora para Pasárgada.
       Paula Carvalho



Vou-Me embora p'ra Pasárgada, pois sei que lá Nos aguardam.
Lá e em todo o lado sou sempre amiga dos meus amigos. Tu e Eu.

Lá...Tenho as pedras dos caminhos das nossas felicidades colecionadas.
Vou- ME EMBORA para PasÁrgada, poisa aqui, já. Eu não estou.
Lá.
Só, sei que me voou a bicicleta que me passeava.
Lá, sei também que existem pisa-PAPÉIS voadores,
Então, e já lá, provarei acerca do tal chá da Laranjeira de amarguras, para sonhar.

Ouvirei, então com atenção e acordar acerca das liberdades, e lá Só.
À partida de nós os dois reencontrados abraçados, amando, qual o sempre.
Vou-me embora para Pasárgada pois vou.
Em Pasárgada, há lá de. tudo.... Notas de vento e água... Um tão sei lá de tanto...É outra Civilização...consomem e tão livremente se descobrem, e claro, a Justa conquistada.
Há também por lá muita passarada. Eu sei.
E tenho lá os filhotes que quero.

Vou-me embora para Pasárgada, lá em chegando o Janeiro     
           L@dyBirdBeL







2.ª viagem: perdidos num mapa

Cerveira

O cervo erguia-se na altura do monte sobranceiro à fronteira entre Portugal e Espanha.
O rio Minho espraiava-se lá em baixo no silêncio da manhã.
Via daqui a ilha dos amores como um pontinho repousado no rio.
Ouvia o chilrear alegre dos pássaros matinais e sentia a rugosidade da pedra granítica sob as
minhas mãos.
A caruma dos pinheiros em volta invadia-me as narinas antecipando o sabor do mel, com travo
de pinhões que me esperava lá em baixo.
E este era um perfeito momento.
        Helena Campos


Rubiães

O sol iluminava crua e despudoradamente as casas do povoado, a rua principal que as separava, as árvores e os campos verdes. Em cada casa buscava o albergue, o destino ansiado daquela primeira etapa de subida pelo inferno da Serra da Labruja, e tão ansiado era o destino que o meu cérebro traduzia «albergue» por «pousada de cinco estrelas». Chegámos, por fim, ao albergue, antiga escola primária, estrategicamente localizada no alto com vista sobre o vale. Muitas pernas, botas, bastões e mochilas espalhadas a que as nossas foram fazer companhia enquanto esperávamos o check in. Cheirávamos a pó, a suor e a cansaço acumulado. O primeiro de sete dias estava cumprido.
    Paula Carvalho



Viagem

Saí da variante à N202 em direção ao Prado pela estrada mais sinuosa que conheço. Como o percurso é muito íngreme, sentimos a temperatura a subir em cada curva virada a poente para depois voltar a descer nas curvas viradas a norte. Uma das vantagens de viajar de moto é estarmos expostos aos elementos e é mais fácil ir identificando os cheiros e sentir a temperatura do ar a bater na cara quando viajamos com a frente do capacete levantada. O verde, nesta zona, tem um cheiro particular, muito fresco, tal a humidade que se concentra nestas estradas que atravessam zonas densas de floresta. Até o alcatrão cheira a musgo. Depois da última curva surge o Prado e, viajando de dia, é como se de repente estivéssemos a viajar noutro mundo, banhado de luz e com uma extensão a perder de vista. O calor liberta o cheiro do rosmaninho que preencha a atmosfera até chegarmos ao café do senhor Costa, que fica mesmo a meio caminho, do lado direito da estrada que atravessa o Prado, no sentido de quem vem da variante. E o Prado é isto. Esta imensidão de rosmaninho pontuada pela construção simples e tosca do senhor Costa. Não se lhe conhece mais nada. Acho que nunca ninguém chegou lá de noite. Nunca encontrariam nem o rosmaninho nem o senhor Costa.
   Francisco Feio


Lá, em raposa de Cima,
senti a matreirice.
nos milheirais, senti tanta agonia nauseabunda, que quase esturriquei
na minha própria fúria.
E se me não contivesse tinha mesmo disparado
P´la minha metralhadora afora.
Um animal pequeno, mas mesmo parvalhão,
andava aos encontrões
de donde vinha o cheiro da minha Padeirinha laborando,
Ela já é um robot, e afinal tem cheiro
Estou gulosa da manteiga, do pão, do café...

depois distraí-me e espreitei a janela
lá estava ela
a cegonha no telhado à chaminé daquela Igreja.

Ao telhado e de meia encarnada lá vai ela
buscar bocados, sustentos abençoados.

L@dyBirdBeL




3.ª Viagem: um objecto que veio de longe


A colher de bétula
Encontrei-a por acaso num mercado de rua em Saaremaa, uma ilha no meio do Báltico. Terá vindo muito provavelmente da Lapónia onde a madeira de bétula é comum no fabrico ancestral destes objetos. Apesar dos anos ainda mantém o cheiro característico desta madeira. É como se segurássemos a memória da floresta na nossa mão.  Não sei como chegou à ilha, mas sei como saiu, de barco, a atravessar o Báltico até ao continente. Em Tallinn andou na mochila e serviu de objeto perfumante que como colher. Viajou por vários aeroportos até chegar a lisboa e em vez de ir acumulando os cheiros e sabores das outras terras por onde passou, preferiu guardar a sua origem e, talvez por isso, quando a cheiramos, somos transportados lá longe, aos lugares onde nasceu. A minha colher não é uma colher, mas um objeto dos sentidos. A sua função principal é levar-nos sempre lá independentemente do sítio onde a mergulhamos. Tem mais de 20 anos. Se fosse hoje, provavelmente nada disto seria verdadeiro e teria nascido numa fábrica qualquer do oriente, sem memória, onde a mão de obra é barata. Mas nesta, ao tocar-lhe, ainda sentimos as mãos que lhe deram forma e a floresta longínqua de onde saiu para acabar, por agora, junto a um outro mar, do outro lado da Europa.
   Francisco Feio

A concha
Apontei a concha na loja galega sem pronunciar uma palavra.
Todo o castelhano aprendido no Instituto Cervantes desapareceu, naquele momento, do meu
cérebro.
Pediram um valor e eu estendi uma nota. Felizmente, a moeda já era a mesma.
Levei a concha para o mísero hotel em Tuy onde estava instalada.
Havia aranhas nas paredes e pescada rasca no prato servido após 7 horas de jejum. Os
Espanhóis só podiam ser loucos. Tomar o pequeno-almoço às 7 da manhã e almoçar às 4 da
tarde com o estômago a roncar de negra fome.
Foi tão má a experiência que atravessei a fronteira para Portugal como quem regressa aos
braços ansiados de sua mãe.
Pendurei a concha na parede da minha casa como única recordação daquela terra.
A concha não viera das Rias baixas da Galiza mas fora importada de Israel, recolhida num
grande mercado de artefactos religiosos, tinha sido vendida por um pescador dos mares da
Galileia, exactamente no local onde há 2000 anos o próprio Cristo tinha sido baptizado.
E este tesouro bíblico repousava na parede da minha casa, sem que eu dele tivesse tido
conhecimento.
   Helena Campos


A taça de esmalte verde – dita emaillé
Estava-se no fim do Verão de 1985, o Verão do Live Aid em que a Aids, pela mão de Rock Hudson, saiu do armário. Marrocos era um destino de sonho, mitificado por Casablanca e nem tanto por Sebastian, personagem sórdida de Brideshead, que aí se exilara, morrera e sepultara.

Havia nos cafés uma juventude culta e letrada, sedenta de liberdade, que era tudo o que lá não se vivia - na fronteira de entrada a bagagem foi metodicamente escrutinada e o Expresso, que, como todos os jornais, era material subversivo, logo ficou confiscado. Já as ruelas dos kasbah pareciam ter cristalizado cinquenta ou mais anos antes.

Foi em Tânger que me compraram, custei em dinares o equivalente a alguns contos de réis, recordação de viagem destinada à mãe de quem me comprou. Embrulhado em papel de seda por baixo de papel de embrulho, fui para o fundo duma mala que se guardou na mala do Citröen BX –modelo que nesse ano ganhou celebridade devido a uma certa rodagem feita por um certo não político com destino a um certo congresso que ficou para a história - pois 1985 foi também o ano em que emergiu Cavaco. Regressei tranquilo, não houve controlo à saída, tão pouco na fronteira de entrada, feita ainda por barco de Ayamonte para Vila Real de Santo António –o cavaquismo estava por vir e a ponte sobre o Guadiana também.

No dia do regresso viajei para Portimão, onde fiquei alguns dias, e depois para o Porto, sempre num fundo de mala. Estive anos na mesa de vidro da sala de visitas da casa dos pais de quem me comprou, visitas não as vi porque ficavam sempre noutra sala, à entrada. Depois vim para Lisboa, onde já habitei duas casas, e agora estou na cozinha, em cima dum armário branco, porque a consultora de Feng Shui disse que a cozinha precisava de verde.
   Paula Carvalho



Castanho Ansião 

Vejo o gato
Vejo um prato vazio
Vejo um cantil com. Mel
Vejo a rua duma grande árvore

Toco o sono do meu gato
Sinto-me em presente companhia
Lambo a minha boca adocicada da sede
Sinto-me refeita da madrugada já tão ida, e hoje ainda

Oiço os pássaros felizes
Entre eles finalmente conversam
Oiço os assobios de todos nós, já também
Os assobiamos, oiço tudo e antigamente nada.

Cheiro da minha canela saboreio os quadradinhos na marmelada.

L@dyBirdBeL

9.5.20

ACASO

Sessão 9 de Maio | Títulos em bolas de naftalina
Ainda online, a sessão foi adaptada e acabou por incluir 3 exercícios diferentes. Muita escrita!




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Exercício 1 – A partir da sugestão da Paula: apresentarmo-nos na sessão com uma chávena de chá e escrever sobre o nosso chá preferido.


Receita para dormir
- Quatro colheres de sopa cheias de flores de laranjeira amarga.
- Um bule adquirido em Monsaraz
   junto ao castelo, enquanto espreitava o Guadiana, lá em baixo, qual toalha azul a espraiar-se na planície
   até à linha do horizonte .
- Um litro de água a ebulir na chaleira.
- Um coador à espera.
As flores a oirarem a água da cor da planície.
Aquele travo amargo a trazer os sono pé ante pé, como uma mão que afaga, silencia os ruídos, aquieta as turbulências. O dia esbate-se, numa lenta diluição de contornos, e entrega-se à noite como a um cobertor quente.
Helena Campos

O chá é como a língua portuguesa
O chá é como a língua portuguesa, pode ser simples ou uma mescla de sabores e experiências. Um mesmo som de uma palavra pode levar-nos a vários sítios diferentes. Podemos ir visitar o Xá da Pérsia e com ele beber um belo chá das arábias. Mas eu estou mesmo só pela a Amadora com uma mas minhas misturas favoritas, chá de Frutos Silvestres com Cidreira. Sou um pouco suspeita para falar deste tema porque adoro esta simples bebida quente com ervinhas a boiar ou encafuadas num saquinho, e bebo a qualquer altura do dia. É a minha companhia de eleição no Inverno porque bebo a ferver. Como diz a minha avó, “aquece cá dentro”. Bom a mim aquece-me também os pés!
Às vezes armo-me em escritora dos filmes e romances e fico a escrever no computador com a bela caneca do chá ao lado, dá assim um certo toque de magia e de aconchego à alma.
Patrícia João


Não gosto de chá
Não gosto de chá, eu disse, e sabia que ao dizê-lo decretava o fim de um romance que nem chegara a começar.
As diferenças entre vera e eu eram muito evidentes. Tudo nos separava: as origens familiares, o tipo de educação, a atividade profissional, nossos estilos de vida. Mas tanto eu quanto ela tentamos nos iludir acreditando que a atração que sentíamos um pelo outro poderia ser transformada em amor e companheirismo, e que seríamos assim capazes de criar laços que apagassem e superassem a distância entre nós.
Mas quando ela chegou na sala carregando a bandeja com o bule de água quente e as duas chávenas, pousou-a sobre a mesinha, abriu e caixa com uma infinidade de tipos de chá e perguntou-me qual eu desejava, pude ver nos seus olhos a destruição de todas as suas, de todas as nossas ilusões, ao responder: não gosto de chá.
Paulo Lima



Prozac numa chávena de chá
Em criança, chá era sinónimo de um xarope morno que se tomava à noite em casa dos padrinhos da minha mãe, bebido à colher ou encharcado em bolachas maria e, por fim, deglutido em conjunto com a pasta formada pelas migalhas das bolachas e pelo açúcar por dissolver. Esta magnífica mistela vinha acondicionada em chávenas de pirex, que se recebiam contra a entrega de cupões de OMO (ou de Ajax ou de coisa que o valha) – e que, tantas eram as chávenas, se deviam comprar em paletes para tomar ao pequeno almoço e limpar os efeitos do xarope da véspera.
Eu pensava que o chá vinha da mercearia do Nunes, que ficava no gaveto formado pela viela que ia para o campo e pela Rua do Pinhal do Lima, que dava acesso ao pinhal do mesmo nome, ou, no Porto, da Casa do Chá da D. Maria José, que ficava na Rua das Flores, mas aprendi num livro das “Gémeas” que o verdadeiro chá vinha da China - não da Índia. Isto muito antes de ter ficado a saber das manigâncias feitas pelos ingleses para não terem de pagar a pronto à China a sua droga de então, “agarrados” que estavam às folhas da camelia sinensis.
Anos depois, na velha Albion, aprendi o que era azia, à custa de beber um chá cor de café, sem farrapinho de leite nem açúcar, mas de que comecei a gostar, tomado ao pequeno almoço com torradas e muita marmelade. Nem o chá era bom nem as torradas prestavam, mas, aos dezanove anos, a liberdade e a magia de uma Summer School na terra da Agatha Christie fazem milagres.
Mais uma década passou e novas viagens às terras de sua Majestade e incursões na bicentenária e cheia de pedigree Twinnings ou em Food Halls do tamanho das Amoreiras, fizeram-me embarcar em novas aventuras sensoriais e descobrir as subtilezas dos morning versus afternoon teas, as delicadezas das primeiras apanhas que fazem do chá uma requintada bebida cor de palha, e, sobretudo, aprender que o chá se bebe em chávenas de porcelana, se possível casca de ovo (e nunca, nunca à colher…).
Depois de experiências várias, que incluíram trauma perpétuo após prova de um lapsang souchong (*)– trauma esse renovado quando experimentei o Orange Pekoe dos Açores - estacionei no Earl Grey, o mais famoso conde do mundo a que já ouvi chamar early grey (será, talvez, um conde madrugador…) e a ele volto todos os dias de manhã, por isso o baptizei de early grey for late blues, o meu antidepressivo diário.
À muito snob mãe do livro das “Gémeas” tenho a dizer que fique com o chá chinês todo para ela. Da China só quero a china para poder saborear o chá em todo o seu esplendor.
(*) chá chinês fortemente fumado
Paula Carvalho



Teína
Concluindo então acerca de teína, saudando desde já o chá para os ânimos que não tem animal que o não tente. Debaixo, e acima do seu efeito por muitas das vezes nefasto pois de olfacto em punho já se ouvem assumindo presumida liberdade.
A liberdade quando assumida, traz ramelas de sabor com sal.
Aos amigos fretam-se os cafés verdadeiros, em primeiro, e, aos chás os últimos, pois eis-nos juntos, na era já, dos Limões vivendo das raspas das suas próprias cascas., no gengibre em mel de luar, com a saudade que fica despida do não querer, talvez um nunca lá voltar para não entardecer na madrugada da folclórica e tão rica sarapilheira esfarrapada porque em farrapos.
Pois que um chá sem asas apenas queima se não for tido em conta a sua altura nivelada pelo calor que foi para lá despejado..., mas despejando.
A coroa de estrela segue muito esta receita:
1 Pau de canela
1 Tira de casca de limão
Gengibre q.b. tendo em conta o coração
Levanta fervura e depois de dez minutos de lume brando sabe-lhe muito bem o mel, mas bem servido, 
E brinde-se à saúde também!

L@dybirdBeL



O chá
O meu chá preferido não é um chá. É uma memória distante da água a ferver num púcaro de esmalte, na cozinha da casa de Lisboa, da minha avó ou da irmã dela a abrirem pequenos sacos de papel com misteriosas e aromáticas folhas secas, a deitá-las na água quente, o Pires de vidro a fazer de testo e depois a espera para que as folhas tingissem a água e libertassem os seus aromas. Gostava de ver as gotas de vapor a condensar no pires transparente, a crescer e balançar até cair por cima das folhas que ficavam à tona da água. Talvez tenha sido esta a minha primeira experiência de química, apesar de, no futuro, nunca ter sido forte na disciplina apesar do fascínio que exerce sobre mim.
Mais tarde, quando nos mudamos, a cena repetia-se sempre que uma delas nos vinha visitar. Era um ritual sobretudo noturno, que tinha lugar antes da hora de deitar, apesar de por vezes também acontecer ao lanche, aí acompanhado de torradas com manteiga que se anunciavam pelo cheiro característico que invadia a casa. Habituei-me cedo aos nomes das plantas, da erva príncipe, a Lúcia Lima e tantas outras que ainda hoje, ao ouvi-las, me transportam para esses tempos, para o escuro da cozinha de Lisboa e para o ar entendido das duas irmãs a preparar o chá que lhes parecia insuflar um alento particular que lhes iluminava o rosto. Eram momentos de pura magia que hoje, agora que sou eu a repetir esses gestos, não sou capaz de recriar. Há qualquer coisa que se perdeu pelo caminho.

Francisco Feio









Exercício 2 – Com o fado Guerra das Rosas (Manuela de Freitas-José Mário Branco) como exemplo, tentar escrever um texto em todos os elementos estejam encadeados, causa-efeito, causa-efeito, causa-efeito…


Estava sentado a ler o jornal…

As notícias falavam de um homem cansado que, como ele, estava sentado a ler um jornal quando foi atingido por um autocarro desgovernado que entrou pela paragem adentro. Ainda nessa manhã, quando ia no autocarro para o trabalho, sentado perto do motorista, tinha pensado que se lhe desse alguma coisa, ao motorista, ele não saberia o que fazer, como nos filmes em que há sempre um herói que salta para os comandos, agarra o volante e salva toda a gente. Lembrava-lhe a cena que tinha apanhado na véspera, a meio de um filme sem nome, igual a todos os filmes sem nome que passam nos canais de cabo. Não entendia esta propensão dos canais em passar filmes de ação. Onde estavam as velhas histórias de amor que lhe animavam os serões, com a mulher ao lado, enquanto absorviam toda aquela felicidade que no final vinha sempre repor a ordem das coisas. Um dia mudou de canal por engano e quando olhou para o lado a mulher já não estava lá. Nem havia sinais de alguma vez lá ter estado. Voltou a mudar de canal mesmo a tempo de ver o homem sentado, a ler o jornal e o autocarro a entrar desgovernado pela paragem adentro.
Francisco Feio

Força maior
Ele tropeçou no degrau e espatifou-se escada abaixo.
O vizinho chamou o 112.
Quando a ambulância chegou ao hospital não foi atendida porque o hospital estava reservado
para o Covid-19.
Deambulou por outros hospitais e a mesma resposta: uma queda era um mal menor, algo que tinha cura.
O telemóvel do acidentado tocou em vão. Era o patrão a exigir que ele comparecesse.
Na ausência de resposta, o patrão decidiu despedi-lo.
Quando o acidentado foi por fim atendido já estava morto.
Agora já não havia patrões que lhe fizessem frente.
Helena Campos      


A janela estava aberta com a cortina a esvoaçar, quando ouvi aquele estrondo na rua.
Era Agosto, daqueles abafados, próprios de um verão quente e seco. Não conseguia respirar bem, os meus pulmões fracos não o permitiam e a janela aberta dava-me um pouco a sensação de sala ventilada. Nem afastava a cortina para ver a beleza do ar a bater contra o pano. Estava distraída nos meus tachos e panelas, quando o estrondo da carroça do Ti Chico contra a barraca da Rosa me acordou dos cozinhados. Que confusão havia no largo da igreja. A Rosa tinha a sua banca de artesanato já preparada para a noite da festa e o pobre do Ti Chico não controlou o seu burro coxo, indo aterrar com os fardos de palha em cima dos panos e pegas de croché.
Eu deixei a carne dos croquetes e lá fui a correr tentar salvar aquela pequena desgraça.
Patrícia João


Ressaca
Acordou tarde. Doía-lhe a cabeça. Bebera demais na noite anterior. Com passos hesitantes foi até a janela e abriu as cortinas. O sol brilhava lá fora. A luz intensa entrou-lhe pelos olhos e acertou seu cérebro como um dardo. Gemeu e fechou os olhos. Respirou fundo e reabriu-os lentamente. Sua visão mais acostumada com a claridade conseguiu então distinguir as formas na rua que resplandecia sob o sol. Não havia uma única nuvem no céu azul.
Vou à praia, pensou. E imediatamente lembrou-se que as praias estavam interditadas. A realidade do confinamento feriu-o mais do que a luz.
Arrastou-se até a cozinha. Ligou a máquina de café. Bebeu um copo d’água e engoliu um comprimido. Tomou o café amargo.
Voltou para o quarto. Fechou as cortinas e deitou-se novamente.
Paulo Lima



Os olhos azuis de Adónis
Ser belo foi a sua primeira qualidade.
Era, de facto, o homem mais belo que alguma vez vira, fiquei caída por ele no dia em que o conheci, um rosto de linhas clássicas e proporcionadas, olhos azuis da cor do mar do Portinho, cabelo ondulado louro da cor do trigo maduro das searas do Alentejo.
A sua segunda qualidade era não se levar a sério, nem a ele nem às dezenas de mulheres que lhe faziam o cerco, sobre as quais dizia que só o queriam pelo corpo e pela cara mas que ele não era homem objecto. Neste particular, dei-lhe sempre razão, homens bonitos não prestam e para objectos belos eu já tinha porcelanas, jóias, peças de ourivesaria que, ao contrário dum pedaço de carne, sobrevivem bem à usura do tempo.
Na noite em que, um pouco bebidos, dormimos juntos percebi que ser belo como uma estátua grega não dá garantia de competências para aquela particular função. Não me importei, o meu desígnio era outro e já estava traçado há muito. Engravidei, logo de gémeos. A quem quis ouvir (mas não havia quem), declarei que se tratava de ovulação dupla por cessação de estrogénios (vulgo pílula) e proclamei que iam ser lindos como o pai, louros de olhos azuis. Ao meu Adónis particular garanti que dele só queria o nome no registo, nada mais.
No dia do parto, valeu-me a sua terceira e de longe melhor qualidade – o sentido de humor com que encarou o irmão gémeo mulato do louro e de olhos azuis, o par que me saiu na rifa da inseminação artificial…

Paula Carvalho







Exercício 3 – Personagem e primeira linha ao acaso
Com uma roleta, escolhemos a personagem e a primeira linha do texto
Personagem: Um cozinheiro que tem uma galinha como animal de estimação
Primeira linha: De repente a sua família parecia muito velha.



Avant-garde
De repente a sua família parecia muito velha, parada no tempo, com ideias bolorentas e classificações arcaicas.
O reino animal, diziam eles, dividia-se em 3 classes:
- Os animais domésticos como os cães e os gatos
- Os animais selvagens que habitavam o Jardim Zoológico
- Os animais comestíveis – todos os outros
Comer animais selvagens como morcegos não parecia uma boa ideia.
Mas porque não povoar a casa com galinhas, coelhos e patos?
E assim, quando o visitava, a família estupefacta tropeçava em animais comestíveis, bem escovados e com direito a veterinário, que nunca veriam o fogo de uma panela.
Helena Campos



Eulália
De repente toda a família parecia muito velha e ficou sem saber se seria dos seus olhos ou teria ficado muito tempo fora.
Zé da Linhas, como era conhecido, era ainda família de Asdrúbal, uma criatura muito calada e sinistra, mas só aos olhos de uma gente tacanha que olhavam de lado a tudo o que era diferente. Asdrúbal era na verdade bem divertido, tinha a galinha Eulália como sua companheira e maior amiga. Zé das Linhas lembra com carinho o seu tio afastado, grande cozinheiro em tempos da sua juventude. Rapaz alto e bonito, Asdrúbal, crescia rapidamente na sua carreira na cozinha. Tinha viajado por todo o mundo, experimentado as melhores iguarias, tinha-se tornado um chefe em ascensão. Tinha aberto o seu novo restaurante e tudo estava pronto para a grande noite com o prato principal “galinha suada” e o que ele suou coitado… ofereceram-lhe uma galinha viva que lhe fugiu da bancada. A galinha louca fugiu para a rua e Asdrúbal correu atrás dela e pum pum pum estava ele ainda maluco atrás da galinha quando o restaurante explodiu! Toda a sua vida foi literalmente pelos ares, só se salvaram ele e a galinha.
Asdrúbal nunca se recompôs deste acontecimento. Vivia agora isolado com a sua amiga galinácea Eulália. Aquela galinha foi mandada por Deus, diz ele, foi ela que o acabou por salvar. Todos os domingos ia ele, quase cego, com a sua Eulália com uma pequenita trela, os dois juntos calados e cúmplices. Zé das Linhas lá o esperava no banco no fundo da igreja.
Patrícia João


Comida de rua
De repente toda sua família parecia muito velha. Tratava-se menos de idade biológica do que de mentalidade. É o que Emílio tentava explicar a Margarida enquanto picava cebolas.
Saber, Margarida, eles não me entendem. Para eles, não faz sentido eu ter vendido o restaurante para me dedicar à comida de rua. Mas não me interessam as estrelas Michelin. Gosto da mobilidade que minha carrinha me proporciona e do contato com as pessoas comuns que nunca poderiam pagar pelo meu menu degustação, mas se deliciam com as minhas chamuças e rissóis. Consegues perceber isso?
Margarida ficou imóvel por um momento, a olhar para Emílio. Em seguidas voltou a ciscar.
Vou tomar isso como um sim, disse o cozinheiro. Quem dera minha esposa e meus pais fossem tão compreensivos.
Paulo Lima


Ser alguém
De repente, toda a sua família parecia muito velha, rostos tisnados e sulcados de rugas, falta de dentes e cabelo, costas curvadas e pernas arqueadas pelo peso dos anos, da canseira e da falta de cálcio ou de vitamina D – ou talvez de ambos. Não conseguia encaixar aquelas pessoas naquelas de quem se despedira, há trinta anos, e cuja memória perpetuara nas fotografias a preto e branco, algumas a sépia, impressas numa cartolina dura e baça, de quatro por seis centímetros, algumas emolduradas por um rendilhado branco que arranhava como dentes de garfo.
 - Tia Emília, é a senhora? - arriscou para a que parecia mais nova, ainda assim com mais de setenta anos.
 - Vossemecê é quem? – retorquiu a inquirida - Olhe que estamos fartos de vigaristas que só vêm cá para nos roubar as pensões com histórias de meios e de nozes e nós nem televisão temos, pois nem a electricidade cá chegou.
 - Pois olhe, eu sou o Arturinho (era um bocado ridículo um homem de cinquenta anos tratar-se assim, mas era como o conheciam na terra), o filho do Serafim, saí daqui quando o meu pai morreu, fiz-me à vida para a ganhar e ser alguém.
 - Ah sim, e conseguiu?
Respirando fundo, muito fundo - ninguém é nunca valorizado na sua terra -, Arturinho respondeu que sim que se tinha tornado em alguém, num escritor de renome lá na terra para onde tinha emigrado em busca de uma identidade. Alcançou a bolsa lateral da mala de viagem e exibiu, com orgulho, o seu último livro “O cozinheiro que tinha uma galinha de estimação”, de Artur Seixo.
A velha mais jovem da vila olhou-o indiferente e atirou-lhe “Vossemecê é do Seixo?” Que sim, que sim, era do Seixo, aquela linda terra onde se encontrava.
- Pois olhe, amigo, está em Vilarinho e não no Seixo. E aqui não há Emílias, morreram todas há mais de cem anos.

Paula Carvalho


De repente toda a sua família parecia muito velha e ele, a ele próprio apreciando-se para de dentro...
Descobriu:
É que lá da Arte do sabor de sabores cozinhados, fritos, assados aos molhos, com molhos bem ou mal-entendidos...estava ele. que não farto, sempre discreto, lá de vez em quando lhe diziam para ouvirem: Muito bom!!! Como sempre!!!...
(!!!) Olha o Jeremias(!!!) Reconheceu-o pela voz.
Contente. Ele e a galinha.
Sim lá  estimada era ela...Só que…ía também em frente para velha… 
'À la Gala de Dali'? Demasiado efémero...
Não!!! Já sei!!! Vou aprender com o Jeremias da mestria de taxidermia e vou decorar a sala que tão bem sirvo com ela também a zelar por mim.
P'lo caminho trago um Ouriço Caixeiro para o mesmo destino a seu tempo agora guardado.
L@dybirdBeL


Um ovo, apenas
De repente, toda a sua família parecia muito velha. Não se lembrava de os ter visto envelhecer. Passava tempo demais encerrado na sua cozinha embrenhado em experiências culinárias que quando saíam das suas mãos arrancavam ahs e ohs dos comensais que lhe enchiam o restaurante. Estas reações levavam-no a regressar à cozinha, experimentando sempre coisas novas, criando pratos de confeção arrojada, misturando sabores que, à partida, se julgariam improváveis. Entre ahs e ohs o tempo foi passando e nas horas solitárias que passava na cozinha, apenas a sua galinha de estimação o acompanhava. Sem braços e mãos não lhe era muito útil, mas fazia-lhe companhia com os seus ocasionais cacarejos. 
Foi numa visita à sala que os reconheceu, sentados a uma mesa. Eram quatro e os rostos familiares. Fez um esforço de memória e percebeu que era a sua família, mas muito mais velha do que se lembrava. De regresso à cozinha, olhou-se no reflexo do fundo de aço das costas de uma das suas frigideiras. Não se reconheceu de tão velho que estava. Procurou a sua galinha, mas não a encontrou. A cozinha estava vazia, apenas uma bancada de metal, solitária, no centro. Em cima dela, mal iluminada, estava um ovo; apenas.
Francisco Feio