Naftalina
Um clássico da Escrever Escrever, as naftalinas são oficinas para os nossos antigos alunos do curso de Escrita Criativa que correm de quinze em quinze dias. Em cada sessão há um tema, uma técnica, uma ideia, um pretexto para escrever e continuar a arejar a escrita. Os textos são escritos na própria sessão. Depois lemos, comentamos e publicamos aqui.
1.1.50
28.9.20
Fomos espantar traças para outro lado
Tema: Manchete.
No aniversário do nascimento de Thomas Wolfe, escrever baseados em notícias do jornal.
- Sessão: 17 outubro
Tema: Era uma v.
Dia Internacional da Preguiça, textos inacabados.
- Sessão: 31 outubro
Tema: Corta!
Dia Mundial da Poupança, micro contos.
- Sessão: 14 novembro
Tema: Todos juntos!
Escrita coletiva.
- Sessão: 28 novembro
Tema: Os cinco e os outros.
Aniversário da morte de Enid Blyton, escrever uma história de aventuras.
- Sessão: 12 dezembro
Tema: Memória do Ano.
inscrições aqui: https://www.escreverescrever.com/component/escrever/curso/452.html?gaveta=1&Itemid=183
19.9.20
Escrita Oulipianas
19 de setembro | LITERATURA POTENCIAL. Aniversário da morte de Italo Calvino, escritas oulipianas
1 – Técnicas Oulipianas a partir de um texto baseado em textos de Calvino
Texto base
Os clássicos são livros dos quais se costuma ouvir: «Estou a reler» e nunca «Estou a ler». No entanto, toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta, como a primeira. Aliás, toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. São livros que trazem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). É clássico aquilo que tende a relegar a actualidades a ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse ruído de fundo.
...Clássico, seja...
Os ouvintes, oram, operam, olvidam o outro, o outrem.
Ouvindo o ontem ondulando outra, outra ouvida, orando onde oiçam oficialmente.
Ontem ouviu- se oiro
Ontem ouviste oiro
Ontem ouvi onde ouvir
Ontem ouvi como ouvir
Ontem, outrora o ocaso, outro olhar. Onde? Ontem.
Amanhã aprofundarei
Enquanto houver manhãs
Igrejas abertas sem cruz, sino só
Ouvirei sempre como novidade
Uivarei a essa Lua Nova que badalará de noite aquando do meu mergulho...
...Oceano...
No entanto, todo o remendado por um clássico faz uma libertação de descoberta, como a primeira.
Aliás, toda a primeira visão de um clássico é um rebanho de remendos.
Um clássico é um lobisomem que nunca terminou de dominar aquilo que tinha para dominar.
São lobisomens que tricotam a marca dos lençóis em que nos deitamos e, atrás de si, olvidam as tragédias que deixaram no cunhado ou nos cunhados que atropelaram (ou então, deixaram marca, tão simplesmente, no linho ou no cotão).
Pedro Caeiro
TÉCNICA: S+6 E V+6 - substituir cada substantivo e verbo de um texto pelo sexto que o sucede no dicionário.
Ler uma só vez não é suficiente
Aliás, a releitura de um clássico é uma descoberta
Sempre fica a sensação que foi uma primeira leitura
Sempre uma primeira leitura é de facto uma releitura
Ironicamente são livros que nunca mais acabam de dizer o que tem para dizer
Como se trouxessem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa
Onde se vislumbram os traços que deixaram nas culturas que atravessaram
Sem prescindir da actualidade, relegam-na para ruído de fundo
Helena Campos
TÉCNICA: ACRÓSTICO com a palavra «Clássicos»
Paula Carvalho
TÉCNICA: PERMUTAÇÃO - alterar a ordem dos substantivos do seguinte modo: o primeiro pelo segundo e vice-versa, o terceiro pelo quarto, etc.
Paula Carvalho
TÉCNICA: DEFINIÇÕES - Substituir cada termo (substantivo, adjectivo, verbo, advérbio) pela sua definição de dicionário. Pode fazer-se escolhendo apenas um dos termos (só os substantivos, só os adjectivos, etc.)
Rapidez: estrada, morte, vida, alegria, motor, barulho, explosão
Exactidão: ferozmente, facto, verdade, real, prontidão, escrita, tranquilidade
Visibilidade: mar, terra, binóculos, guerra, importância, família, ilha
Multiplicidade: cidadania, respeito, interrogação liberdade, parafuso, cultura, camaradagem
Consistência: ferro, fogo, navio, avião, avô, laço, puré
Pedro Caeiro, L@dyBirdBeL
Para isso bastam as ciências exactas
Toda a arte é multiplicidade e leveza
Toda a arte torna presentes os invisíveis evidentes de que é feita a alma
Helena Campos
O livro tem de estar bem escrito, com muitas metáforas, tem de permitir visualizar o que se está a ler, tem de fazer sentir bem. E também um pouco de poesia, é libertador, não enfadonho. Também gosto da consistência, uma coerência no argumento, nas personagens, detalhes que não se perdem.
Leveza – fluidez, elegância narrativa, pormenores, picaresco, pictórico. As histórias-mosaico ou dimensionais com várias personagens a contar a mesma história na sua perspectiva (exemplos: Amor & Cia, Julian Barnes Quarteto de Alexandria, Lawrence Durrell).
Consistência – fio condutor excepção: o surrealismo
Paula Carvalho
24.6.20
Escrever em bola de neve
20 de Junho | No solstício de Verão, escritas em bola de neve.
Para inspirar: um cadáver esquisito em dança
1. ÎLLOT – MOLLO
À medida que se escreve, cada um vai dizendo uma palavra em voz alta que todos têm de incorporar no texto
Manifesto Anti-Lockdown
Na Bíblia, primeiro era o verbo, no nosso caso, primeiro foi o lockdown: não sairás de casa … descontadas as vinte e sete excepções contantes de outras tantas alíneas da lei.
Passámos toda a Primavera confinados no confinamento do lar, a trabalhar em trabalho remoto, dito tele-trabalho. Sem sair.
Primeiro construímos a narrativa da segurança - não se usava máscara porque dava falsa sensação de segurança. Nem se faziam testes porque davam qualquer coisa que parece que também era falsa. Talvez fosse aquilo dos falsos positivos...
Não celebramos Páscoa e muito menos o dia da Mãe.
Tivemos, sim, cravos, discursos e festa na Assembleia, manif na Alameda, autocarros vindos de todo o lado, coreografias de Leni Riefenstahl.
E, de repente, Maio chegou e sem máscara não andarás e testar testarás.
E desconfinar desconfinarás, excepto nas dezassete excepções de outras tantas alíneas da lei.
Desconfinarás a bicas na baixa, a almoços no Bairro Alto, a espectáculos no Campo Pequeno em que os toureados fomos nós, o povão que come e cala – e parece que gosta.
Desconfinarás também na Praia da Rocha, tu de bikini, na espuma das ondas, os Men In Black de fato e gravata e sapato de polimento a calcar a areia.
Não se pode parar para pensar que não foi para estarmos confinados em prisão domiciliaria, a morrer de pobreza, solidão e tristeza, que se fez o 25 de Abril?
E, de repente, chegou o Verão.
Paula Carvalho
Arte de morrer
Iam sem destino pela rua fora numa tarde quente de estio. O mar ao longe era um convite à evasão. Começaram a correr, os ténis leves a bater nos traseiros, até ao primeiro autocarro que encontraram. Atiraram-se para os assentos com a luz do solstício a invadir as janelas.
Quando o veículo parou, soltaram-se como massas pegajosas a escorrer para o areal. O mar agora perto a rugir como um leão na selva. Sentaram-se na espuma à espera das ondas. A maré descia, vazava na direcção do horizonte.
Olharam um para o outro e pensaram que a vida era aquilo, a arte de morrer. Estenderam-se na areia de olhos fechados, crianças balbuciavam ao longe, talvez um cão. O trabalho que dava morrer devagar. O som de um barco, talvez de um avião no céu sem nuvens.
Não construímos nada na vida – pensavam em uníssono. Porque a maré vazava naquele dia em vez de subir? Teria dado jeito. Até a maré estava em desacordo.
No passado, circulavam sapatilhas de borracha que se vendiam à entrada daquela praia, assim como tábuas de madeira que os velhos alugavam em busca de iodo para uma saúde débil
Agora, nem sapatilhas nem tábuas, restava uma praia pedregosa abandonada entre limos e algas. Abandonada como eles aos ventos do ocaso.
Helena Campos
2. HISTÓRIA COLABORATIVA
A partir de nome de personagem, tique, ditado popular, cor e outros elementos escolhidos previamente pelos participantes.
Penélope costumava dizer que de bom grado deixava o bom gosto todo para os outros e que ela se bastava com ter o gosto de gostar de amarelo.
Tudo começou por acaso, que é como começa quase tudo, a mãe, costureira numa loja de vestir, trazia para casa, no fim de cada estação, os monos a que dava a volta e transformava em roupas decentes para Penélope e Ulisses, os gémeos que havia tido com Ambrósio, seu falecido – não porque ele se finara mas porque se finara o casamento – as cores claras e alegres, como o amarelo e o vermelho, eram para Penélope, as mais discretas – azul e verde (credo, escarro na parede!) para Ulisses. Mas, num Carnaval, Ulisses tivera direito a um fato azul e vermelho com o homem morcego estampado, enquanto Penélope se vestira de veludo azul, como a Pequena Sereia, aquela cuja verdadeira história nada tinha de Disney mas era sim um repositório de horrores e de violência de género – maldito Andresen, reflectia Penélope, enquanto coçava a cabeça, e que ainda bem que tudo se passara há umas décadas pois se fosse agora teria a pobre da mãe sido acusada de perpetuar estereótipos de género.
Paula Carvalho
Algures na China
Os morcegos de dentes arreganhados eram um grande problema.
Gostava do azul do crepúsculo colado com a noite, do silêncio deserto do mercado nocturno, um vasto chão cheio de sangue coalhado, animais esventrados. Os dentes dos morcegos a faiscar no escuro.
Ambrósio circulava pelas sombras cosido com o negrume, ainda assim apanhou o vírus. Quem anda à chuva molha-se.
Helena Campos
8.6.20
Intertextos
6 de Junho |Aniversário Dia D. | Aliados e Invasões: intertextos.
A partir as primeiras linhas dos versos do poema Lisboa, Adília Lopes
Cidade branca semeada de paredes nuas ao sol, sem uma só árvore de permeio
Cidade azul da minha infância perdida à beira Tejo
Cidade negra dos nossos sonhos submersos em cinza
Cidade lilás, rosa, roxa, púrpura das noites insones
Cidade dourada das eternas esperanças por concretizar
Cidade prateada ao fim da tarde de um dia de chuva
Helena Campos
Semeada de oásis rosa dos telhados.
Cidade azul,
Da cor do céu que espelha o mar.
Cidade negra
De abismos, poços e vertigens.
Cidade lilás em Maio,
O mês dos jacarandás.
Cidade dourada no Outono,
Cidade prateada,
Da prata cor da palavra.
Paula Carvalho
Cidade branca
Semeada da seiva das árvores abatidas para construí-la
Cidade azul
Céu sem nuvens das manhãs de primavera
Cidade negra
Construída sobre os escombros da dor e da raiva dos que a erguerem, pedra a pedra
Cidade lilás
Crepúsculo eterno das noites de verão
Cidade dourada
Que reluz ao sol e esconde as marcas de seu passado sombrio
Cidade prateada
Dura como o metal que comprou todas as suas almas
Paulo Lima
Cidade Branca
Semeada de pó talco das flores
Cidade Azul
Aquela onde o mar e o céu se fundem num só
Cidade negra
Onde todos são de pele escura
Cidade lilás
Repleta de jacarandás
Ciadade dourada
Premiada de luz doce de fim de tarde
Cidade prateada
Onde há sempre essa névoa por cima de tudo
Mariana Matias
Faço minhas as tuas palavras
A partir do poema Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade.
Escrever apenas com as palavras do poeta.
Trouxeste a chave?
Sós e mudas, em estado de dicionário
Refugiam-se na noite as palavras
Trouxeste a chave?
O que pensas e sentes ainda não é poesia
A tua sepultada infância não era poesia
Trouxeste a chave?
Penetra surdamente no reino das palavras
Os poemas esperam ser escritos
Com o poder da palavra e do silêncio
Trouxeste a chave?
Helena Campos
Os versos do verso versam
Sobre prosas onde posam, prosando,
As faces que são o verso dos versos,
Faces com coroas que as coroam,
Faces paralisadas,
Paula Carvalho
Não faças versos
Não faças poesia
Não me reveles teus sentimentos
Não recomponhas tua sepultada e merencória infância
Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação
Penetra surdamente no reino das palavras
Chega mais perto e contempla
Repara
Espera
Tem paciência
Paulo Lima
Não faças versos sobre acontecimentos.
Nem me reveles teus sentimentos.
Trouxeste a chave?
(e seu poder de silêncio)
Espera que cada um se realize e consuma com o seu poder de palavra
ermas de melodia e conceito que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem
Penetra surdamente no reino das palavras
Chega mais perto e contempla as palavras
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Mariana Matias
O terceiro autor
Com um livro da escolha de cada um, cruzar as linhas entre os dois autores.
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
Já não tenho em mim quaisquer sonhos. Talvez tenha sempre sabido. Talvez tenha acalentado de forma voluntariamente uma ilusão interminável.
O destino a conduzir a carroça do tudo pele estrada do nada.
Falhei tudo mas talvez não houvesse saída em nenhum dos universos paralelos que poderia ter percorrido.
O tudo estava condenado ao nada. O tudo tinha o nada gravado nas entranhas como um gene condenado.
Serei sempre o da mansarda ainda que não more nela.
Serei sempre só o que tinha qualidades
O que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta.
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira.
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
O que sobrou foi insuficiência,
O que restou foi cinza premeditada.
O que ficou disto tudo foi uma vida amarrotada como um trapo velho arremessado ao chão.
Uma juventude estilhaçada
Um silêncio pasmado.
Fui uma promessa e falhei.
Helena Campos
(a partir do poema Tabacaria, Álvaro de Campos)
Silêncio
Com a aproximação do dia da minha festa de noivado, os silêncios tomaram conta da minha vida – da minha, da do meu futuro noivo e da daquele que com ele competia, silêncios feitos de sombras e de escuridão.
Na minha vida dupla nasceu a nova identidade de uma pessoa que me desabitou mas sem me deixar por um segundo, perseguindo-me, colando-se-me aos pés, à sombra, gritando-me remoques e críticas que eu sabia serem merecidas mas que nem por isso surtiam efeito.
Encontrávamo-nos todos os dias durante pelo menos duas horas, eu e o meu amante. Fazíamos o que fazem os amantes, com paixão que progressivamente se mesclava com o desespero que me consumia o corpo. Ele não sei, eu nem nesses momentos deixava de pensar na estranha em que me tornara, capaz de amar um e o outro, sem de nenhum querer abdicar.
À medida que o dia se aproximava, abraçávamo-nos com mais força, suávamos mais abundantemente. Passei a viver em função dessas duas horas diárias, antes era a espera, era a antecipação, durante era o transe, era o abandono, depois era o penoso recomeço duma contagem decrescente de horas, minutos, segundos, de um jejum que não redime porque vive e se alimenta do pecado, mas, apesar disso, jejum sério, tão sério que no dia do noivado no vestido cabiam duas, eu e a minha dupla, o que, parecendo adequado, não chegou para encher o vestido, que ficou abandonado e só no silêncio da sombra do quarto. Nós as duas partimos, outra vez uma, mas nem por isso feliz.
Paula Carvalho
(a partir de O Museu da Inocência, Orhan Pamuk)
Depois, com o correr do tempo, dá-lhe e dá-lhe, o jogo se tornou mais brando. Havia passado a novidade e fomos aos poucos perdendo o interesse naquilo que, de início, nos parecera tão fascinante. Quase nos esquecíamos de jogar.
Já não se viam átomos novos: os que se perdiam não eram mais substituídos. Todos percebíamos que o que antes era uma diversão tornara-se um aborrecimento. Chegávamos de má vontade ao pátio para jogar.
Pfwfp também havia mudado. Tornara-se agressivo e mal-humorado. Já não o reconhecíamos. Ao invés de palavras afetuosas, tratava-nos afora com deboche e sarcasmo.
Alguns dias, não aparecia à hora costumeira. Eu o chamava e ele não respondia. Nenhum de nós queria admiti-lo, mas sabíamos que o havíamos perdido para sempre. E suportávamos a dor causada por sua ausência eventual porque tínhamos consciência de que a dor ainda maior de não tê-lo nunca mais seria insuportável.
Paulo Lima
(a partir de Jogos sem fim, in Todas as cosmicômicas, Italo Calvino)
Embora possa esquecer-se da origem
Nunca poderá esquecer as folhas caídas no chão onde se deitou tantas vezes debaixo daquela árvore
- Então tudo o que é puro
fica translúcido na sua mente, qual rio que reflete o azul e as mil cores do céu
Por fim, corrompeu os laços de amor
com aquela senhora tão bela que lhe aparecia nos sonhos e nas tardes quentes de Julho
- Mas nunca, nunca se esquece
Aquele olhar e doces gestos, e as suaves palavras que ele lhe sussurra e ele se deleita , divagando, calmo, mexendo-se de um lado para o outro, sempre com a esperança de estender a mão e a encontrar.
E, assim, tentaram fazer-se iguais aos Deuses.
Mariana Matias
(a partir de um poema de Friedrich Hölderlin)
26.5.20
Mapas, Viagens.
23 de Maio | Faz a viagem. | Escrever inspirados em mapas e viagens.
1.ª viagem: Pasárgada
Vou-me embora para Pasárgada
Lá tenho um Deus à minha espera
Vou-me embora para Pasárgada
Aqui estou condenada ao desterro
Lá tenho horizontes sem fim
Lá farei a juventude regressar
Lá provarei os vinhos mais doces
Ouvirei as músicas mais sublimes
E lá cantarei a canção do infinito
Vou-me embora para Pasárgada
Em Pasárgada há esperança e sonho
É outra civilização
Há rios e mares por descobrir
Lá sou livre
E tenho tudo o que quero
Vou-me embora para Pasárgada
Helena Campos
Vou-me embora para Pasárgada.
Lá sou amigo dum pássaro,
Lá tenho tempo e liberdade.
Vou-me embora para Pasárgada.
Aqui sou o que querem que eu seja,
Lá sou eu, só eu, eu só.
Lá farei tudo ou não farei nada,
Lá provarei a doçura de apenas ser,
Ouvirei o chamamento da liberdade
e lá encontrar-me-ei.
Vou-me embora para Pasárgada.
Em Pasárgada há tudo o que eu quiser que haja,
É outra civilização.
Há tempo e silêncio e liberdade.
Lá sou a liberdade
E tenho todas as prisões que quero.
Vou-me embora para Pasárgada.
Paula Carvalho
Vou-Me embora p'ra Pasárgada, pois sei que lá Nos aguardam.
Lá e em todo o lado sou sempre amiga dos meus amigos. Tu e Eu.
Lá...Tenho as pedras dos caminhos das nossas felicidades colecionadas.
Vou- ME EMBORA para PasÁrgada, poisa aqui, já. Eu não estou.
Lá.
Só, sei que me voou a bicicleta que me passeava.
Lá, sei também que existem pisa-PAPÉIS voadores,
Então, e já lá, provarei acerca do tal chá da Laranjeira de amarguras, para sonhar.
Ouvirei, então com atenção e acordar acerca das liberdades, e lá Só.
À partida de nós os dois reencontrados abraçados, amando, qual o sempre.
Vou-me embora para Pasárgada pois vou.
Em Pasárgada, há lá de. tudo.... Notas de vento e água... Um tão sei lá de tanto...É outra Civilização...consomem e tão livremente se descobrem, e claro, a Justa conquistada.
Há também por lá muita passarada. Eu sei.
E tenho lá os filhotes que quero.
Vou-me embora para Pasárgada, lá em chegando o Janeiro
L@dyBirdBeL
2.ª viagem: perdidos num mapa
Cerveira
O cervo erguia-se na altura do monte sobranceiro à fronteira entre Portugal e Espanha.
O rio Minho espraiava-se lá em baixo no silêncio da manhã.
Via daqui a ilha dos amores como um pontinho repousado no rio.
Ouvia o chilrear alegre dos pássaros matinais e sentia a rugosidade da pedra granítica sob as
minhas mãos.
A caruma dos pinheiros em volta invadia-me as narinas antecipando o sabor do mel, com travo
de pinhões que me esperava lá em baixo.
E este era um perfeito momento.
Helena Campos
Rubiães
O sol iluminava crua e despudoradamente as casas do povoado, a rua principal que as separava, as árvores e os campos verdes. Em cada casa buscava o albergue, o destino ansiado daquela primeira etapa de subida pelo inferno da Serra da Labruja, e tão ansiado era o destino que o meu cérebro traduzia «albergue» por «pousada de cinco estrelas». Chegámos, por fim, ao albergue, antiga escola primária, estrategicamente localizada no alto com vista sobre o vale. Muitas pernas, botas, bastões e mochilas espalhadas a que as nossas foram fazer companhia enquanto esperávamos o check in. Cheirávamos a pó, a suor e a cansaço acumulado. O primeiro de sete dias estava cumprido.
Paula Carvalho
Lá, em raposa de Cima,
senti a matreirice.
nos milheirais, senti tanta agonia nauseabunda, que quase esturriquei
na minha própria fúria.
E se me não contivesse tinha mesmo disparado
P´la minha metralhadora afora.
Um animal pequeno, mas mesmo parvalhão,
andava aos encontrões
de donde vinha o cheiro da minha Padeirinha laborando,
Ela já é um robot, e afinal tem cheiro
Estou gulosa da manteiga, do pão, do café...
depois distraí-me e espreitei a janela
lá estava ela
a cegonha no telhado à chaminé daquela Igreja.
Ao telhado e de meia encarnada lá vai ela
buscar bocados, sustentos abençoados.
L@dyBirdBeL
3.ª Viagem: um objecto que veio de longe
A concha
Apontei a concha na loja galega sem pronunciar uma palavra.
Todo o castelhano aprendido no Instituto Cervantes desapareceu, naquele momento, do meu
cérebro.
Pediram um valor e eu estendi uma nota. Felizmente, a moeda já era a mesma.
Levei a concha para o mísero hotel em Tuy onde estava instalada.
Havia aranhas nas paredes e pescada rasca no prato servido após 7 horas de jejum. Os
Espanhóis só podiam ser loucos. Tomar o pequeno-almoço às 7 da manhã e almoçar às 4 da
tarde com o estômago a roncar de negra fome.
Foi tão má a experiência que atravessei a fronteira para Portugal como quem regressa aos
braços ansiados de sua mãe.
Pendurei a concha na parede da minha casa como única recordação daquela terra.
A concha não viera das Rias baixas da Galiza mas fora importada de Israel, recolhida num
grande mercado de artefactos religiosos, tinha sido vendida por um pescador dos mares da
Galileia, exactamente no local onde há 2000 anos o próprio Cristo tinha sido baptizado.
E este tesouro bíblico repousava na parede da minha casa, sem que eu dele tivesse tido
conhecimento.
Helena Campos
A taça de esmalte verde – dita emaillé
Estava-se no fim do Verão de 1985, o Verão do Live Aid em que a Aids, pela mão de Rock Hudson, saiu do armário. Marrocos era um destino de sonho, mitificado por Casablanca e nem tanto por Sebastian, personagem sórdida de Brideshead, que aí se exilara, morrera e sepultara.
Havia nos cafés uma juventude culta e letrada, sedenta de liberdade, que era tudo o que lá não se vivia - na fronteira de entrada a bagagem foi metodicamente escrutinada e o Expresso, que, como todos os jornais, era material subversivo, logo ficou confiscado. Já as ruelas dos kasbah pareciam ter cristalizado cinquenta ou mais anos antes.
Foi em Tânger que me compraram, custei em dinares o equivalente a alguns contos de réis, recordação de viagem destinada à mãe de quem me comprou. Embrulhado em papel de seda por baixo de papel de embrulho, fui para o fundo duma mala que se guardou na mala do Citröen BX –modelo que nesse ano ganhou celebridade devido a uma certa rodagem feita por um certo não político com destino a um certo congresso que ficou para a história - pois 1985 foi também o ano em que emergiu Cavaco. Regressei tranquilo, não houve controlo à saída, tão pouco na fronteira de entrada, feita ainda por barco de Ayamonte para Vila Real de Santo António –o cavaquismo estava por vir e a ponte sobre o Guadiana também.
No dia do regresso viajei para Portimão, onde fiquei alguns dias, e depois para o Porto, sempre num fundo de mala. Estive anos na mesa de vidro da sala de visitas da casa dos pais de quem me comprou, visitas não as vi porque ficavam sempre noutra sala, à entrada. Depois vim para Lisboa, onde já habitei duas casas, e agora estou na cozinha, em cima dum armário branco, porque a consultora de Feng Shui disse que a cozinha precisava de verde.
Paula Carvalho
Castanho Ansião
Vejo o gato
Vejo um prato vazio
Vejo um cantil com. Mel
Vejo a rua duma grande árvore
Toco o sono do meu gato
Sinto-me em presente companhia
Lambo a minha boca adocicada da sede
Sinto-me refeita da madrugada já tão ida, e hoje ainda
Oiço os pássaros felizes
Oiço os assobios de todos nós, já também
Os assobiamos, oiço tudo e antigamente nada.
Cheiro da minha canela saboreio os quadradinhos na marmelada.
L@dyBirdBeL
9.5.20
ACASO
Foi numa visita à sala que os reconheceu, sentados a uma mesa. Eram quatro e os rostos familiares. Fez um esforço de memória e percebeu que era a sua família, mas muito mais velha do que se lembrava. De regresso à cozinha, olhou-se no reflexo do fundo de aço das costas de uma das suas frigideiras. Não se reconheceu de tão velho que estava. Procurou a sua galinha, mas não a encontrou. A cozinha estava vazia, apenas uma bancada de metal, solitária, no centro. Em cima dela, mal iluminada, estava um ovo; apenas.