Sessão
9 de Maio | Títulos em bolas de naftalina
Ainda online, a sessão foi adaptada e acabou por incluir 3
exercícios diferentes. Muita escrita!
Exercício
1 – A partir da sugestão da Paula: apresentarmo-nos na sessão com uma chávena
de chá e escrever sobre o nosso chá preferido.
Receita
para dormir
-
Quatro colheres de sopa cheias de flores de laranjeira amarga.
-
Um bule adquirido em Monsaraz
junto ao castelo, enquanto espreitava o
Guadiana, lá em baixo, qual toalha azul a espraiar-se na planície
até à linha do horizonte .
-
Um litro de água a ebulir na chaleira.
-
Um coador à espera.
As
flores a oirarem a água da cor da planície.
Aquele
travo amargo a trazer os sono pé ante pé, como uma mão que afaga, silencia os
ruídos, aquieta as turbulências. O dia esbate-se, numa lenta diluição de
contornos, e entrega-se à noite como a um cobertor quente.
Helena
Campos
O chá é como a língua
portuguesa
O chá é como a língua portuguesa,
pode ser simples ou uma mescla de sabores e experiências. Um mesmo som de uma
palavra pode levar-nos a vários sítios diferentes. Podemos ir visitar o Xá da
Pérsia e com ele beber um belo chá das arábias. Mas eu estou mesmo só pela a
Amadora com uma mas minhas misturas favoritas, chá de Frutos Silvestres com
Cidreira. Sou um pouco suspeita para falar deste tema porque adoro esta simples
bebida quente com ervinhas a boiar ou encafuadas num saquinho, e bebo a
qualquer altura do dia. É a minha companhia de eleição no Inverno porque bebo a
ferver. Como diz a minha avó, “aquece cá
dentro”. Bom a mim aquece-me também os pés!
Às vezes armo-me em escritora dos
filmes e romances e fico a escrever no computador com a bela caneca do chá ao
lado, dá assim um certo toque de magia e de aconchego à alma.
Patrícia
João
Não
gosto de chá
Não gosto de chá, eu disse, e sabia que ao
dizê-lo decretava o fim de um romance que nem chegara a começar.
As diferenças entre vera e eu eram muito
evidentes. Tudo nos separava: as origens familiares, o tipo de educação, a
atividade profissional, nossos estilos de vida. Mas tanto eu quanto ela
tentamos nos iludir acreditando que a atração que sentíamos um pelo outro
poderia ser transformada em amor e companheirismo, e que seríamos assim capazes
de criar laços que apagassem e superassem a distância entre nós.
Mas quando ela chegou na sala carregando a
bandeja com o bule de água quente e as duas chávenas, pousou-a sobre a mesinha,
abriu e caixa com uma infinidade de tipos de chá e perguntou-me qual eu
desejava, pude ver nos seus olhos a destruição de todas as suas, de todas as
nossas ilusões, ao responder: não gosto de chá.
Paulo Lima
Prozac
numa chávena de chá
Em
criança, chá era sinónimo de um xarope morno que se tomava à noite em casa dos
padrinhos da minha mãe, bebido à colher ou encharcado em bolachas maria e, por
fim, deglutido em conjunto com a pasta formada pelas migalhas das bolachas e
pelo açúcar por dissolver. Esta magnífica mistela vinha acondicionada em
chávenas de pirex, que se recebiam contra a entrega de cupões de OMO (ou
de Ajax ou de coisa que o valha) – e que, tantas eram as chávenas, se
deviam comprar em paletes para tomar ao pequeno almoço e limpar os efeitos do
xarope da véspera.
Eu
pensava que o chá vinha da mercearia do Nunes, que ficava no gaveto formado
pela viela que ia para o campo e pela Rua do Pinhal do Lima, que dava acesso ao
pinhal do mesmo nome, ou, no Porto, da Casa do Chá da D. Maria José, que ficava
na Rua das Flores, mas aprendi num livro das “Gémeas” que o verdadeiro chá
vinha da China - não da Índia. Isto muito antes de ter ficado a saber das
manigâncias feitas pelos ingleses para não terem de pagar a pronto à China a
sua droga de então, “agarrados” que estavam às folhas da camelia sinensis.
Anos
depois, na velha Albion, aprendi o que era azia, à custa de beber um chá cor de
café, sem farrapinho de leite nem açúcar, mas de que comecei a gostar, tomado
ao pequeno almoço com torradas e muita marmelade. Nem o chá era bom nem
as torradas prestavam, mas, aos dezanove anos, a liberdade e a magia de uma Summer
School na terra da Agatha Christie fazem milagres.
Mais
uma década passou e novas viagens às terras de sua Majestade e incursões na bicentenária
e cheia de pedigree Twinnings ou em Food Halls do tamanho das
Amoreiras, fizeram-me embarcar em novas aventuras sensoriais e descobrir as
subtilezas dos morning versus afternoon teas, as delicadezas das
primeiras apanhas que fazem do chá uma requintada bebida cor de palha, e,
sobretudo, aprender que o chá se bebe em chávenas de porcelana, se possível
casca de ovo (e nunca, nunca à colher…).
Depois
de experiências várias, que incluíram trauma perpétuo após prova de um lapsang
souchong (*)– trauma esse renovado quando experimentei o Orange Pekoe dos
Açores - estacionei no Earl Grey, o mais famoso conde do mundo a que já
ouvi chamar early grey (será, talvez, um conde madrugador…) e a ele
volto todos os dias de manhã, por isso o baptizei de early grey for late
blues, o meu antidepressivo diário.
À
muito snob mãe do livro das “Gémeas” tenho a dizer que fique com o chá chinês
todo para ela. Da China só quero a china para poder saborear o chá em todo o
seu esplendor.
(*)
chá chinês fortemente fumado
Paula
Carvalho
Teína
Concluindo
então acerca de teína, saudando desde já o chá para os ânimos que não tem
animal que o não tente. Debaixo, e acima do seu efeito por muitas das vezes
nefasto pois de olfacto em punho já se ouvem assumindo presumida liberdade.
A
liberdade quando assumida, traz ramelas de sabor com sal.
Aos
amigos fretam-se os cafés verdadeiros, em primeiro, e, aos chás os últimos,
pois eis-nos juntos, na era já, dos Limões vivendo das raspas das suas próprias
cascas., no gengibre em mel de luar, com a saudade que fica despida do
não querer, talvez um nunca lá voltar para não entardecer na madrugada da
folclórica e tão rica sarapilheira esfarrapada porque em farrapos.
Pois
que um chá sem asas apenas queima se não for tido em conta a sua altura
nivelada pelo calor que foi para lá despejado..., mas despejando.
A
coroa de estrela segue muito esta receita:
1
Pau de canela
1
Tira de casca de limão
Gengibre
q.b. tendo em conta o coração
Levanta
fervura e depois de dez minutos de lume brando sabe-lhe muito bem o mel, mas
bem servido,
E
brinde-se à saúde também!
L@dybirdBeL
O chá
O meu chá preferido não é um chá. É uma memória
distante da água a ferver num púcaro de esmalte, na cozinha da casa de Lisboa,
da minha avó ou da irmã dela a abrirem pequenos sacos de papel com misteriosas
e aromáticas folhas secas, a deitá-las na água quente, o Pires de vidro a fazer
de testo e depois a espera para que as folhas tingissem a água e libertassem os
seus aromas. Gostava de ver as gotas de vapor a condensar no pires
transparente, a crescer e balançar até cair por cima das folhas que ficavam à tona
da água. Talvez tenha sido esta a minha primeira experiência de química, apesar
de, no futuro, nunca ter sido forte na disciplina apesar do fascínio que exerce
sobre mim.
Mais tarde, quando nos mudamos, a cena
repetia-se sempre que uma delas nos vinha visitar. Era um ritual sobretudo
noturno, que tinha lugar antes da hora de deitar, apesar de por vezes também
acontecer ao lanche, aí acompanhado de torradas com manteiga que se anunciavam
pelo cheiro característico que invadia a casa. Habituei-me cedo aos nomes das
plantas, da erva príncipe, a Lúcia Lima e tantas outras que ainda hoje, ao
ouvi-las, me transportam para esses tempos, para o escuro da cozinha de Lisboa
e para o ar entendido das duas irmãs a preparar o chá que lhes parecia insuflar
um alento particular que lhes iluminava o rosto. Eram momentos de pura magia
que hoje, agora que sou eu a repetir esses gestos, não sou capaz de recriar. Há
qualquer coisa que se perdeu pelo caminho.
Francisco Feio
Exercício
2 – Com o fado Guerra das Rosas (Manuela de Freitas-José Mário Branco)
como exemplo, tentar escrever um texto em todos os elementos estejam
encadeados, causa-efeito, causa-efeito, causa-efeito…
Estava sentado a ler o jornal…
As notícias falavam de um homem cansado que,
como ele, estava sentado a ler um jornal quando foi atingido por um autocarro
desgovernado que entrou pela paragem adentro. Ainda nessa manhã, quando ia no
autocarro para o trabalho, sentado perto do motorista, tinha pensado que se lhe
desse alguma coisa, ao motorista, ele não saberia o que fazer, como nos filmes
em que há sempre um herói que salta para os comandos, agarra o volante e salva
toda a gente. Lembrava-lhe a cena que tinha apanhado na véspera, a meio de um
filme sem nome, igual a todos os filmes sem nome que passam nos canais de cabo.
Não entendia esta propensão dos canais em passar filmes de ação. Onde estavam
as velhas histórias de amor que lhe animavam os serões, com a mulher ao lado,
enquanto absorviam toda aquela felicidade que no final vinha sempre repor a
ordem das coisas. Um dia mudou de canal por engano e quando olhou para o lado a
mulher já não estava lá. Nem havia sinais de alguma vez lá ter estado. Voltou a
mudar de canal mesmo a tempo de ver o homem sentado, a ler o jornal e o
autocarro a entrar desgovernado pela paragem adentro.
Francisco Feio
Força
maior
Ele
tropeçou no degrau e espatifou-se escada abaixo.
O
vizinho chamou o 112.
Quando
a ambulância chegou ao hospital não foi atendida porque o hospital estava
reservado
para
o Covid-19.
Deambulou
por outros hospitais e a mesma resposta: uma queda era um mal menor, algo que
tinha cura.
O
telemóvel do acidentado tocou em vão. Era o patrão a exigir que ele
comparecesse.
Na
ausência de resposta, o patrão decidiu despedi-lo.
Quando
o acidentado foi por fim atendido já estava morto.
Agora
já não havia patrões que lhe fizessem frente.
Helena Campos
A janela estava aberta com a cortina a
esvoaçar, quando ouvi aquele estrondo na rua.
Era
Agosto, daqueles abafados, próprios de um verão quente e seco. Não conseguia
respirar bem, os meus pulmões fracos não o permitiam e a janela aberta dava-me
um pouco a sensação de sala ventilada. Nem afastava a cortina para ver a beleza
do ar a bater contra o pano. Estava distraída nos meus tachos e panelas, quando
o estrondo da carroça do Ti Chico contra a barraca da Rosa me acordou dos
cozinhados. Que confusão havia no largo da igreja. A Rosa tinha a sua banca de
artesanato já preparada para a noite da festa e o pobre do Ti Chico não
controlou o seu burro coxo, indo aterrar com os fardos de palha em cima dos
panos e pegas de croché.
Eu
deixei a carne dos croquetes e lá fui a correr tentar salvar aquela pequena
desgraça.
Patrícia João
Ressaca
Acordou tarde. Doía-lhe a cabeça. Bebera demais
na noite anterior. Com passos hesitantes foi até a janela e abriu as cortinas.
O sol brilhava lá fora. A luz intensa entrou-lhe pelos olhos e acertou seu
cérebro como um dardo. Gemeu e fechou os olhos. Respirou fundo e reabriu-os
lentamente. Sua visão mais acostumada com a claridade conseguiu então
distinguir as formas na rua que resplandecia sob o sol. Não havia uma única
nuvem no céu azul.
Vou à praia, pensou. E imediatamente lembrou-se
que as praias estavam interditadas. A realidade do confinamento feriu-o mais do
que a luz.
Arrastou-se até a cozinha. Ligou a máquina de
café. Bebeu um copo d’água e engoliu um comprimido. Tomou o café amargo.
Voltou para o quarto. Fechou as cortinas e
deitou-se novamente.
Paulo Lima
Os olhos
azuis de Adónis
Ser belo foi a sua primeira qualidade.
Era, de facto, o homem mais belo que alguma vez
vira, fiquei caída por ele no dia em que o conheci, um rosto de linhas
clássicas e proporcionadas, olhos azuis da cor do mar do Portinho, cabelo
ondulado louro da cor do trigo maduro das searas do Alentejo.
A sua segunda qualidade era não se levar a
sério, nem a ele nem às dezenas de mulheres que lhe faziam o cerco, sobre as
quais dizia que só o queriam pelo corpo e pela cara mas que ele não era homem
objecto. Neste particular, dei-lhe sempre razão, homens bonitos não prestam e
para objectos belos eu já tinha porcelanas, jóias, peças de ourivesaria que, ao
contrário dum pedaço de carne, sobrevivem bem à usura do tempo.
Na noite em que, um pouco bebidos, dormimos
juntos percebi que ser belo como uma estátua grega não dá garantia de competências
para aquela particular função. Não me importei, o meu desígnio era outro e já
estava traçado há muito. Engravidei, logo de gémeos. A quem quis ouvir (mas não
havia quem), declarei que se tratava de ovulação dupla por cessação de
estrogénios (vulgo pílula) e proclamei que iam ser lindos como o pai, louros de
olhos azuis. Ao meu Adónis particular garanti que dele só queria o nome no
registo, nada mais.
No dia do parto, valeu-me a sua terceira e de
longe melhor qualidade – o sentido de humor com que encarou o irmão gémeo
mulato do louro e de olhos azuis, o par que me saiu na rifa da inseminação
artificial…
Paula Carvalho
Exercício
3 – Personagem e primeira linha ao acaso
Com
uma roleta, escolhemos a personagem e a primeira linha do texto
Personagem:
Um cozinheiro que tem uma galinha como animal de estimação
Primeira
linha: De repente a sua família parecia muito velha.
Avant-garde
De
repente a sua família parecia muito velha, parada no tempo, com ideias
bolorentas e classificações arcaicas.
O
reino animal, diziam eles, dividia-se em 3 classes:
-
Os animais domésticos como os cães e os gatos
-
Os animais selvagens que habitavam o Jardim Zoológico
-
Os animais comestíveis – todos os outros
Comer
animais selvagens como morcegos não parecia uma boa ideia.
Mas
porque não povoar a casa com galinhas, coelhos e patos?
E
assim, quando o visitava, a família estupefacta tropeçava em animais
comestíveis, bem escovados e com direito a veterinário, que nunca veriam o fogo
de uma panela.
Helena
Campos
Eulália
De repente toda a família parecia muito velha e ficou sem saber se seria dos seus olhos ou teria ficado muito
tempo fora.
Zé
da Linhas, como era conhecido, era ainda família de Asdrúbal, uma criatura
muito calada e sinistra, mas só aos olhos de uma gente tacanha que olhavam de
lado a tudo o que era diferente. Asdrúbal era na verdade bem divertido, tinha a
galinha Eulália como sua companheira e maior amiga. Zé das Linhas lembra com
carinho o seu tio afastado, grande cozinheiro em tempos da sua juventude. Rapaz
alto e bonito, Asdrúbal, crescia rapidamente na sua carreira na cozinha. Tinha
viajado por todo o mundo, experimentado as melhores iguarias, tinha-se tornado
um chefe em ascensão. Tinha aberto o seu novo restaurante e tudo estava pronto
para a grande noite com o prato principal “galinha suada” e o que ele suou coitado…
ofereceram-lhe uma galinha viva que lhe fugiu da bancada. A galinha louca fugiu
para a rua e Asdrúbal correu atrás dela e pum pum pum estava ele ainda maluco
atrás da galinha quando o restaurante explodiu! Toda a sua vida foi
literalmente pelos ares, só se salvaram ele e a galinha.
Asdrúbal
nunca se recompôs deste acontecimento. Vivia agora isolado com a sua amiga galinácea
Eulália. Aquela galinha foi mandada por Deus, diz ele, foi ela que o acabou por
salvar. Todos os domingos ia ele, quase cego, com a sua Eulália com uma
pequenita trela, os dois juntos calados e cúmplices. Zé das Linhas lá o
esperava no banco no fundo da igreja.
Patrícia João
Comida de rua
De repente toda sua família parecia
muito velha. Tratava-se menos de idade biológica do que de mentalidade. É o que
Emílio tentava explicar a Margarida enquanto picava cebolas.
Saber, Margarida, eles não me
entendem. Para eles, não faz sentido eu ter vendido o restaurante para me
dedicar à comida de rua. Mas não me interessam as estrelas Michelin. Gosto da
mobilidade que minha carrinha me proporciona e do contato com as pessoas comuns
que nunca poderiam pagar pelo meu menu degustação, mas se deliciam com as
minhas chamuças e rissóis. Consegues perceber isso?
Margarida ficou imóvel por um
momento, a olhar para Emílio. Em seguidas voltou a ciscar.
Vou tomar isso como um sim, disse o
cozinheiro. Quem dera minha esposa e meus pais fossem tão compreensivos.
Paulo Lima
Ser
alguém
De repente, toda a sua família parecia muito
velha, rostos tisnados e sulcados de rugas, falta de dentes e cabelo, costas
curvadas e pernas arqueadas pelo peso dos anos, da canseira e da falta de
cálcio ou de vitamina D – ou talvez de ambos. Não conseguia encaixar aquelas
pessoas naquelas de quem se despedira, há trinta anos, e cuja memória
perpetuara nas fotografias a preto e branco, algumas a sépia, impressas numa
cartolina dura e baça, de quatro por seis centímetros, algumas emolduradas por
um rendilhado branco que arranhava como dentes de garfo.
- Tia
Emília, é a senhora? - arriscou para a que parecia mais nova, ainda assim com
mais de setenta anos.
-
Vossemecê é quem? – retorquiu a inquirida - Olhe que estamos fartos de vigaristas
que só vêm cá para nos roubar as pensões com histórias de meios e de nozes e nós
nem televisão temos, pois nem a electricidade cá chegou.
- Pois
olhe, eu sou o Arturinho (era um bocado ridículo um homem de cinquenta anos
tratar-se assim, mas era como o conheciam na terra), o filho do Serafim, saí
daqui quando o meu pai morreu, fiz-me à vida para a ganhar e ser alguém.
- Ah
sim, e conseguiu?
Respirando fundo, muito fundo - ninguém é nunca
valorizado na sua terra -, Arturinho respondeu que sim que se tinha tornado em
alguém, num escritor de renome lá na terra para onde tinha emigrado em busca de
uma identidade. Alcançou a bolsa lateral da mala de viagem e exibiu, com
orgulho, o seu último livro “O
cozinheiro que tinha uma galinha de estimação”, de Artur Seixo.
A velha mais jovem da vila olhou-o indiferente
e atirou-lhe “Vossemecê é do Seixo?” Que sim, que sim, era do Seixo, aquela
linda terra onde se encontrava.
- Pois olhe, amigo, está em Vilarinho e não no
Seixo. E aqui não há Emílias, morreram todas há mais de cem anos.
Paula
Carvalho
De
repente toda a sua família parecia muito velha e ele, a ele próprio
apreciando-se para de dentro...
Descobriu:
É
que lá da Arte do sabor de sabores cozinhados, fritos, assados aos molhos, com
molhos bem ou mal-entendidos...estava ele. que não farto, sempre discreto, lá
de vez em quando lhe diziam para ouvirem: Muito bom!!! Como sempre!!!...
(!!!)
Olha o Jeremias(!!!) Reconheceu-o pela voz.
Contente.
Ele e a galinha.
Sim
lá estimada era ela...Só que…ía também em frente para velha…
'À
la Gala de Dali'? Demasiado efémero...
Não!!!
Já sei!!! Vou aprender com o Jeremias da mestria de taxidermia e vou decorar a
sala que tão bem sirvo com ela também a zelar por mim.
P'lo
caminho trago um Ouriço Caixeiro para o mesmo destino a seu tempo agora
guardado.
L@dybirdBeL
Francisco Feio
Um ovo, apenas
De repente, toda a sua família parecia muito
velha. Não se lembrava de os ter visto envelhecer. Passava tempo demais
encerrado na sua cozinha embrenhado em experiências culinárias que quando saíam
das suas mãos arrancavam ahs e ohs dos comensais que lhe enchiam o restaurante.
Estas reações levavam-no a regressar à cozinha, experimentando sempre coisas novas,
criando pratos de confeção arrojada, misturando sabores que, à partida, se
julgariam improváveis. Entre ahs e ohs o tempo foi passando e nas horas
solitárias que passava na cozinha, apenas a sua galinha de estimação o
acompanhava. Sem braços e mãos não lhe era muito útil, mas fazia-lhe companhia
com os seus ocasionais cacarejos.
Foi numa visita à sala que os reconheceu, sentados a uma mesa. Eram quatro e os rostos familiares. Fez um esforço de memória e percebeu que era a sua família, mas muito mais velha do que se lembrava. De regresso à cozinha, olhou-se no reflexo do fundo de aço das costas de uma das suas frigideiras. Não se reconheceu de tão velho que estava. Procurou a sua galinha, mas não a encontrou. A cozinha estava vazia, apenas uma bancada de metal, solitária, no centro. Em cima dela, mal iluminada, estava um ovo; apenas.
Foi numa visita à sala que os reconheceu, sentados a uma mesa. Eram quatro e os rostos familiares. Fez um esforço de memória e percebeu que era a sua família, mas muito mais velha do que se lembrava. De regresso à cozinha, olhou-se no reflexo do fundo de aço das costas de uma das suas frigideiras. Não se reconheceu de tão velho que estava. Procurou a sua galinha, mas não a encontrou. A cozinha estava vazia, apenas uma bancada de metal, solitária, no centro. Em cima dela, mal iluminada, estava um ovo; apenas.
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