Robert Doisneau |
Sessão
18 abril | Tema: A meias, ou mais. Escritas colectivas
1 – Jogos surrealistas
a)
cadáver esquisito
(a
partir da morfologia da frase original «o cadáver esquisito beberá vinho novo»)
O
VÍRUS ADMIRÁVEL LEVARÁ HOMENS E MULHERES TRISTONHOS
Paulo e Paula
O POETA VERDADEIRO
COMERÁ O PASSADO AGUDO
Zé António,
Mariana, Francisco, Paulo, Paula
O HOMEM PREGUIÇOSO
MORRERÁ NO PASSADO OPACO
Lídia, Tânia,
Paula, Paulo, Francisco
O PADEIRO
FININHO DEBICARÁ BONECOS TEMEROSOS
Cristina,
Mariana, José, Lídia, Tânia
b) Se…
então
SE NÃO
FOSSE PRENDADA, FARIA MUITAS COISAS DE MANEIRA DIFERENTE – QUASE TUDO, ALIÁS -
MAS AÍ O MUNDO JÁ NÃO TERIA SIDO IGUAL
Carlos,
Paula
SE NÃO
HOUVER AMANHÃ, OS PÁSSAROS NÃO SE RECOLHERÃO
Mariana, Zé António
SE NÃO
CHOVESSE, AS REDES SOCIAIS SERIAM LUGARES MAIS AGRADÁVEIS
Francisco,
Paulo
SE NÃO
HOUVESSE FERMENTO, A PRIMAVERA SERIA AINDA MAIS MISERÁVEL.
Tânia, Lídia
SE NÃO TIVÉSSEMOS
CUIDADO, NÃO TERÍAMOS NOS CASADO
Paula,
Carlos
2 – Bola
de neve
A cada frase, acrescentam-se palavras, antes ou depois ou no meio.
OS
PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS
PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS
DONOS DOS PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS
DONOS DOS PARDAIS TONTOS CANTAM DESCONTENTES
AGORA NEM
VOCÊS NEM OS DONOS DOS PARDAIS TONTOS CANTAM CONTENTES.
AGORA NEM
EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS DOS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS CANTAM
CONTENTES
AGORA,
COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS DOS
DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS CANTAM CONTENTES
ORA BOLAS
NEM COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS
DOS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS, CANTAM CONTENTES
ORA
BOLAS, NEM COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS
CRETINOS QUE CRITICAM OS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM INTELIGENTES, MAS SÃO
UNS TONTOS QUE NÃO FICAM EM CASA, CANTAM CONTENTES.
Cristina,
Francisco, Tânia, Zé António, Lídia, Carlos, Paula, Mariana, Paulo
3 - Texto
com palavras de todos.
Cada um
contribuiu com uma palavra. Depois, cada um escreveu um texto com todas.
Palavras:
segredo, D. Quitéria, triste, nenúfar, madrugada, Rua da Madalena, felicidade,
1 chave, carta
Até à
próxima
Sabem
quem morreu? A D. Quitéria, do terceiro esquerdo ali do vinte e cinco. Veio
para cá viver há uns trinta anos, mais coisa menos coisa, na altura era uma
trintona, a resvalar para os quarentas, radiosa, voluptuosa, mesmo, na rua
todas as cabeças se voltavam à sua passagem, os olhos dos homens gulosos, os
das mulheres assassinos. Não era segredo nenhum que não havia na Rua da
Madalena adolescente que, acordado ou a dormir, com ela não sonhasse. Alguns,
mais afoitos, cobravam a chave aos amigos para verem as vistas do estendal da
roupa da Quitéria, na esperança, doce, de ter a felicidade de ver cuecas de
renda, ligueiros, bodies e soutiens de seda – que era coisa que as mães deles
não gastavam porque atavio de mulher de má vida e pior fama, eufemismo para
puta. Pois nunca viram mais do que panos da loiça tristes e lençóis estampados
de nenúfares uns, outros com as copas do baralho das cartas, o que a todos cortou
a tusa. Nunca se lhe conheceu homem. Também com aqueles lençóis…
Paula
Carvalho
O
Mistério do Nenúfar Verde
Após
receber uma misteriosa e triste carta, Dona Quitéria, minha vizinha de porta,
confidenciou-me nesta madrugada um bombástico segredo!
Após
isso, deu-me uma chave e pediu-me que a guardasse. Em seguida, fez-me um
exótico chá de folhas de Nenúfar Verde do Tibete – o que segundo ela é o elixir
da felicidade! Em meia hora,
inebriados,
pusemo-nos a dançar loucamente na Rua da Madalena. Dona Quitéria gritava aos
quatro ventos: “esse segredo levaremos para o nosso túmulo! Use a chave para
descobrir a porta secreta!”.
Despachei-me
de pronto para casa e deixei a chave que recebi em baixo do capacho de fronte à
porta de seu apartamento.
Repeti a
dose de chá. Pensei alto:
- Eu hein
Dna. Quitéria! Essa história é sua!
- O chá
aceito repetir! Obrigado Dona Quitéria!
Carlos
Borges
A
madrugada escurecia a Rua da Madalena.
Nenúfar Felicidade coloca a chave na ranhura silenciosamente. Entra em casa e em cima da cómoda vê um envelope com o seu nome. Abre e começa a ler a carta.
"Guardo este segredo há meses. O apelido que me deste em matrimónio não faz mais sentido. A nossa vida tornou-se um lugar triste. Fui para casa dos meus pais. Preciso de tempo. Assinado, Quitéria."
Nenúfar Felicidade coloca a chave na ranhura silenciosamente. Entra em casa e em cima da cómoda vê um envelope com o seu nome. Abre e começa a ler a carta.
"Guardo este segredo há meses. O apelido que me deste em matrimónio não faz mais sentido. A nossa vida tornou-se um lugar triste. Fui para casa dos meus pais. Preciso de tempo. Assinado, Quitéria."
Tânia
Teixeira ( www.anetadadulce.pt)
D. Quitéria
nem queria acreditar quando abriu a carta. A chave tinha chegado! Adeus
madrugadas tristes, adeus velha Rua da Madalena. Saiu em segredo, abriu o portão
do parque e foi direita ao tanque. Lá estava - o seu Alfredo, esperando-a em
cima de um nenúfar com o seu sorriso batráquio.
Cristina
Borges
Dona
Quitéria subia sempre a Rua da Madalena, ainda de madrugada, e entrava pelo
miolo urbano que a levava até ao castelo. No lago central ficava a olhar os
nenúfares e a admirar a sua capacidade de se manter à tona da água, mesmo
quando algum dos batráquios que habitavam o lago viesse pôr em perigo a
fragilidade das suas folhas. Dona Quitéria transmitia uma felicidade triste
desde que recebera a carta acompanhada daquela chave que lhe abriria a porta
para um segredo que, agora, não queria conhecer. Toda a vida tinha procurado
desvendar o mistério que rodeava o seu falecido e, agora que tinha essa
possibilidade, percebeu que os segredos só valem enquanto se mantiverem
secretos. Nessa manhã, olhou mais uma vez os nenúfares e, antes de se levantar,
deixou cair lentamente a chave nas águas do lago.
Francisco
Feio
Dona
Quitéria subia a Rua da Madalena com a carta na mão. Há muitos anos não chegava
em casa tão tarde. Normalmente, às três da manhã já estava em sono profundo.
Mas não naquela madrugada.
Parou
diante da porta do seu prédio. Olhou para o outro lado da rua e irritou-se mais uma vez
com o símbolo ridículo do hotel recém-inaugurado, que havia desalojado dezenas
de antigos moradores da rua. Que relação poderia haver entre aquele desenho
estilizado de um nenúfar com o restante da fachada do edifício? Porque diabos um
hotel na baixa pombalina havia de se chamar Nenúfar. Suspirou, desconsolada.
Procurou
a chave de casa na bolsa. Subiu lentamente as escadas e entrou no pequeno apartamento,
fechando e trancando com cuidado a porta atrás de si. Deixou-se cair na poltrona,
exausta.
Tirou a
carta do envelope e leu novamente as revelações estarrecedoras que ela continha.
Toda sua felicidade fora construída em cima de uma mentira. E todos os envolvidos naquela história suja estavam mortas. Menos ela. Lembrou-se do verso da canção
que o seu falecido marido, um brasileiro que ela agora descobrira ser um farsante,
gostava de cantarolar: Tristeza
não tem fim, felicidade sim.
Paulo
Lima
D. Quitéria há
muito que não dormia bem. Ora era o vizinho surdo que não baixava o volume do
televisor, ora era o gato que teimava em miar a meio da noite.
Numa dessas
madrugadas decidiu escrever uma carta, por se sentir tão triste naquela noite
tão fria, tão negra e tão só.
Decidiu
escrever à Elisabete a perguntar pelos nenúfares que ela tinha no seu
grande jardim, cheio de cores, orvalho e natureza.
No meio dessas
palavras pensou que lhe deveria contar esse segredo que tanto a atormentava,
dia após dia. E escreveu essa amálgama de acontecimentos, palavra a palavra,
sentindo no fim de tudo, um grande alívio e felicidade por ter partilhado,
ainda que no papel, que tinha herdado a casa da Tia Maria na Rua da Madalena.
Enquanto
escrevia entretinha-se com a chave, ora a tilintar, ora a passar-lhe por entre
os dedos.
Iria mudar-se
finalmente para a cidade, deixando este cafofo no interior do país.
Mariana Matias
D. Quitéria levanta-se de
madrugada, gosta de cumprimentar a Aurora e sente-se triste quando falha a esse
encontro matinal com a mitologia. Dar-lhe-ia também Febo os bons dias?
Com uma velha chave
enferrujada, abre a caixa de correio onde há anos não chega uma única carta. Logo
desce a Rua da Madalena, deambula por Rossio e Restauradores, sobe a Avenida e
o Parque e vai banhar a vista e a alma nos melancólicos nenúfares da outrossim
melancólica Estufa Fria.
É esse o singelo segredo
para o seu irrisório pedaço de felicidade diária.
José António Santos