4.4.20

QUEM NUNCA PECOU




4 de Abril, Naftalina online. Vozes e rostos no fio dos dias a confessar pecados, tão leves..., e oferecer o prazer da palavra.


Exercício 1: Um pecado de infância




Pecadilho
Nunca rezei as 10 Avé-Marias que me eram impostas de cada vez que ia ao confessionário. Sempre tive a dúvida se estava perdoado por inteiro ou só na percentagem de Avé-Marias rezadas.
Aliás a expectaiva, mais que a absolvição, era antecipar qual a penitância do dia. Porque me eram prescritas umas vezes Avé-Marias e outras Pai- Nossos?
Suspeito ter sido esta a minha iniciação na diferença de géneros.
José Santos


Tinha uma grande amiga na primeira classe, de nome Marta.
Éramos unha com carne e de tal modo inseparáveis que duvidam se seria somente uma amizade inocente. Mas um dia, no grande pátio do Colégio tivemos uma zaragata por um pequeno porta-chaves felpudo pois queríamos brincar ao mesmo tempo.
Sempre fui bruta, na verdadeira ascensão do termo: na contenção da força e mais tarde - com a idade - com as palavras, mas naquela tarde, irritei-me de tal modo que a empurrei e ela foi contra as grades de uma janela.
Percebi desde logo que tinha sido demais, e pouco tempo depois vi uma gota de sangue a cair-lhe para a gola da camisa. Tinha-lhe feito um golpe na cabeça.
Serviu-me de susto sendo este o meu grande pecado.
Mariana Matias



O cubo pouco mágico Knorr
A minha infância foi recheada de pequenos pecadilhos, as mais das vezes disparates e asneirolas, em resultado de muita energia e criatividade que, como um rio desordenado, me faziam correr para nascente ao invés de ir para a foz. Alguns foram sabidos de imediato – era difícil esconder colares de contas ou brincos rebentados …
Dos nunca revelados lembro-me do dia em que, gulosa, achei que se um caldo Knorr dava bom sabor à comida havia de ser coisa boa; na despensa, sozinha, meti o cubo culinário mágico na boca e meti-me num sarilho – sobreveio um enorme enjoo, que durou várias horas e não me deixou jantar. Pais e irmãos preocupados levaram a crise à conta do fígado, ainda frágil da hepatite recente, o que a cor amarelada parecia justificar.
Só no Verão passado o confessei à minha mãe e à minha irmã, depois de ter sabido que a minha mãe, gulosa por chocolates, atacara a despensa em busca dum quadrado de chocolate gourmet, porque aromatizado de flor de sal, e queixara-se (amargamente) de que aquele chocolate não prestava para nada, exibindo enjoada um invólucro de prata que continha os restos dum caldo de carne.
Quem sai aos seus…
Paula Carvalho


Pecado de Natal
Quando eu era pequena, devia ter uns 6 ou 7 anos, todos os Natais ajudava a minha Mãe a montar a árvore de Natal e uma das decorações que eu mais gostava eram uns chocolates com formas de Pai Natal, bolas decorativas, sinos, que ficavam na árvore até à noite de Natal, altura em que me era dada autorização para os comer. Como eu era muito gulosa e não aguentava até dia 24 ia comendo os chocolates sem ninguém ver, compunha as pratas muito bem compostas e voltava a pô-las na árvore como se nada tivesse acontecido. Claro que quando o truque se descobriu a minha mãe ficou bastante zangada comigo e nunca mais se puseram chocolates na árvore de Natal.
Rute Gonçalves





Exercício 2: Um objecto que é pecado.
Encontrar um objecto que associamos a um pecado e descrever.


Sou complexo:
Eu sou a ira; ou melhor, sou o veículo de toda a ira. É através de mim que destilam o ódio quotidiano por tudo e por todos, a falta de amor-próprio e o vazio com que encaram o presente e o futuro.
Sou também a inveja, aquele que traz tudo, no que procuras o que não tens e sem nada te dar.
Sou a soberba ruidosa, feita marca e símbolo, independentemente do que na realidade sou, algo que se exibe como instrumento de poder.
Sou também a preguiça, aquele que te faz sentar, horas a fio, com a ilusão de que estás a aprender alguma coisa quando na realidade está, na maioria das vezes, a adormecer o teu pensamento. 

Normalmente vivo no teu bolso. Sou o teu telefone.
Francisco Feio


O diploma
Há anos que presido à sala onde o dono da casa me pendurou numa parede, e a quem limpa o pó com regularidade e afecto.
Ele é um tipo modesto, apagado, suspeito mesmo que um dos poucos orgulhos que tem é em mim. Pois eu não sou modesto, olho com superioridade para os meus insignificantes vizinhos, sem história nem brilho.
Emoldurado em madeira nobre, redigido em latim, autenticado pelo Magnífico Reitor, de fita de seda, chancela e brasão, eu sou o diploma da Universidade e não me recrimino por este orgulho.

Na verdade, ao orgulho acrescentaria outro pecado capital – o da luxúria que sinto na minha contemplação.
José Santos



Que bem estou eu, exótico, neste mundo de penugens a discorrer do negro, branco ou castanho, com o meu roxo alaranjado fora de sítio.
Realço interesses e curiosidades. Saísse eu à rua e o desafio seria ficar por aprofundizar a primeira passagem do olhar.
Dificilmente ficam desiludidos. Os meus olhos arredondam na medida certa da astúcia ancestral e o toque empinado do final das sobrancelhas permite-me mimicar sorrisos credíveis o suficiente para garantir que as crianças continuam a fugir mais depressa do bico dos dentes.
Porquê. Pergunto-me então. Hoje, como ontem e amanhã provavelmente, me batizou a sina com este nome causador de dor e ardor ao subir pela goela do seu utilizador.
Em latim até soa bonito. Ou soava. Hoje parece mais modalidade de comida italiana. Invidia, invidia. Parece que consigo cheirar o queijo a derreter no tomate. Até isso é bonito e tem proveito.
Ainda assim, aqui estou, escondido da vista para não trazer ao de cima a versão da pessoa que naquele dia me carregou da prateleira só porque a amiga estrangeira enaltecera as características dos mochos.
Ele há vidas tramadas. Com tanto charme para espalhar, estou aqui renegado, para que a dita cuja não se deixe lembrar que o que brilha no jardim ao lado pode ser cobre, mas parece mesmo ouro!
Mariana Cabral



Eu sou...
A vaidade do brilho e a luxúria do vermelho, a gula da bebedeira que convida ao torpor da preguiça, não poucas vezes conduzindo à ira, e não sou avara com a inveja…
Vejam-me.
Sou bela e elegante, meu brilho é estonteante. Abro-me pouco a pouco e ofereço-me a quem me quiser, prefiro ser saboreada, muitos me engolem, numa gula nem disfarçada.
Sou vermelha, encarnada, que é a cor de pecado da carne.
Por dentro sou incolor, mas não inodora e muito menos sem sabor. Lanço chamas apagadas àqueles que me devoram e à preguiça se rendem.
Sou Absolut. Absolutamente divina, devassa, dissoluta.
Paula Carvalho


A Ira vs. O Cubo de Rubik
Dá-me um certo gozo a ira que eu provoco há várias gerações. Como é que um simples objeto de entretenimento pode ser causador de tanta raiva, tanto autocomiseração, tanta falta de esperança nas próprias capacidades intelectuais? Eu fui uma grande invenção… num tempo onde não havia computadores nem internet nem redes sociais, eu fui o passatempo de muita gente, algo que desafiava a inteligência, a perspicácia, a técnica, a lucidez.
Por isso, quando a grande maioria falhou em solucionar o meu quebra-cabeças, a ira apoderou-se de muitos. Ouviram-se gritos de raiva, choros de tristeza, uivos de medo e outros barulhos e ruídos impossíveis de descrever.
Incrível como um objeto tão pequeno desencadeou em tantas almas um pecado mortal tão grave: quem nunca me tentou resolver e falhou miseravelmente, não sabe o que é ficar irado.
Rute Gonçalves


Eu sou a assassina das criaturas mais teimosas destes reinos por ora vividos: Molecula e Mineral. Se bem que criaturas tão pouco ou nada boas, só o tempo vai compensar a paciência, essa sapiência, também...com um quanto baste de resignação em certas e determinadas circunstâncias só mesmo nessa condição. D'outra forma inadequação.
Viver, descobri: É a miraculosa certeza de morrer, viver é também a miraculosa arte de saber falecer.
Gosto de assim o crer..
Por vezes a infelicidade é um privilégio com que me brindo, com que me prendo
Joana Dinis





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