18.4.20

ESCRITAS A MEIAS

                                                                                            Robert Doisneau



Sessão 18 abril | Tema: A meias, ou mais. Escritas colectivas


 1 – Jogos surrealistas

a) cadáver esquisito
(a partir da morfologia da frase original «o cadáver esquisito beberá vinho novo»)

O VÍRUS ADMIRÁVEL LEVARÁ HOMENS E MULHERES TRISTONHOS
Paulo e Paula

O POETA VERDADEIRO COMERÁ O PASSADO AGUDO
Zé António, Mariana, Francisco, Paulo, Paula

O HOMEM PREGUIÇOSO MORRERÁ NO PASSADO OPACO
Lídia, Tânia, Paula, Paulo, Francisco

O PADEIRO FININHO DEBICARÁ BONECOS TEMEROSOS
Cristina, Mariana, José, Lídia, Tânia

b) Se… então

SE NÃO FOSSE PRENDADA, FARIA MUITAS COISAS DE MANEIRA DIFERENTE – QUASE TUDO, ALIÁS - MAS AÍ O MUNDO JÁ NÃO TERIA SIDO IGUAL
Carlos, Paula

SE NÃO HOUVER AMANHÃ, OS PÁSSAROS NÃO SE RECOLHERÃO
Mariana, Zé António

SE NÃO CHOVESSE, AS REDES SOCIAIS SERIAM LUGARES MAIS AGRADÁVEIS
Francisco, Paulo

SE NÃO HOUVESSE FERMENTO, A PRIMAVERA SERIA AINDA MAIS MISERÁVEL.
Tânia, Lídia

SE NÃO TIVÉSSEMOS CUIDADO, NÃO TERÍAMOS NOS CASADO
Paula, Carlos


2 – Bola de neve
A cada frase, acrescentam-se palavras, antes ou depois ou no meio.

OS PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS DONOS DOS PARDAIS CANTAM CONTENTES
NEM OS DONOS DOS PARDAIS TONTOS CANTAM DESCONTENTES
AGORA NEM VOCÊS NEM OS DONOS DOS PARDAIS TONTOS CANTAM CONTENTES.
AGORA NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS DOS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS CANTAM CONTENTES
AGORA, COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS DOS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS CANTAM CONTENTES
ORA BOLAS NEM COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS DOS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM TONTOS, CANTAM CONTENTES
ORA BOLAS, NEM COM TANTO GALO A CANTAR NA ESTUFA FRIA, NEM EU NEM VOCÊS NEM OS CRETINOS QUE CRITICAM OS DONOS DOS PARDAIS QUE SE DIZEM INTELIGENTES, MAS SÃO UNS TONTOS QUE NÃO FICAM EM CASA, CANTAM CONTENTES.
Cristina, Francisco, Tânia, Zé António, Lídia, Carlos, Paula, Mariana, Paulo



3 - Texto com palavras de todos.

Cada um contribuiu com uma palavra. Depois, cada um escreveu um texto com todas.
Palavras: segredo, D. Quitéria, triste, nenúfar, madrugada, Rua da Madalena, felicidade, 1 chave, carta


Até à próxima
Sabem quem morreu? A D. Quitéria, do terceiro esquerdo ali do vinte e cinco. Veio para cá viver há uns trinta anos, mais coisa menos coisa, na altura era uma trintona, a resvalar para os quarentas, radiosa, voluptuosa, mesmo, na rua todas as cabeças se voltavam à sua passagem, os olhos dos homens gulosos, os das mulheres assassinos. Não era segredo nenhum que não havia na Rua da Madalena adolescente que, acordado ou a dormir, com ela não sonhasse. Alguns, mais afoitos, cobravam a chave aos amigos para verem as vistas do estendal da roupa da Quitéria, na esperança, doce, de ter a felicidade de ver cuecas de renda, ligueiros, bodies e soutiens de seda – que era coisa que as mães deles não gastavam porque atavio de mulher de má vida e pior fama, eufemismo para puta. Pois nunca viram mais do que panos da loiça tristes e lençóis estampados de nenúfares uns, outros com as copas do baralho das cartas, o que a todos cortou a tusa. Nunca se lhe conheceu homem. Também com aqueles lençóis…
Paula Carvalho


O Mistério do Nenúfar Verde
Após receber uma misteriosa e triste carta, Dona Quitéria, minha vizinha de porta, confidenciou-me nesta madrugada um bombástico segredo!
Após isso, deu-me uma chave e pediu-me que a guardasse. Em seguida, fez-me um exótico chá de folhas de Nenúfar Verde do Tibete – o que segundo ela é o elixir da felicidade! Em meia hora,
inebriados, pusemo-nos a dançar loucamente na Rua da Madalena. Dona Quitéria gritava aos quatro ventos: “esse segredo levaremos para o nosso túmulo! Use a chave para descobrir a porta secreta!”.
Despachei-me de pronto para casa e deixei a chave que recebi em baixo do capacho de fronte à porta de seu apartamento.
Repeti a dose de chá. Pensei alto:
- Eu hein Dna. Quitéria! Essa história é sua!
- O chá aceito repetir! Obrigado Dona Quitéria!
Carlos Borges


A madrugada escurecia a Rua da Madalena.
Nenúfar Felicidade coloca a chave na ranhura silenciosamente. Entra em casa e em cima da cómoda vê um envelope com o seu nome. Abre e começa a ler a carta.
"Guardo este segredo há meses. O apelido que me deste em matrimónio não faz mais sentido. A nossa vida tornou-se um lugar triste. Fui para casa dos meus pais. Preciso de tempo. Assinado, Quitéria."
Tânia Teixeira ( www.anetadadulce.pt)


D. Quitéria nem queria acreditar quando abriu a carta. A chave tinha chegado! Adeus madrugadas tristes, adeus velha Rua da Madalena. Saiu em segredo, abriu o portão do parque e foi direita ao tanque. Lá estava - o seu Alfredo, esperando-a em cima de um nenúfar com o seu sorriso batráquio.
Cristina Borges


Dona Quitéria subia sempre a Rua da Madalena, ainda de madrugada, e entrava pelo miolo urbano que a levava até ao castelo. No lago central ficava a olhar os nenúfares e a admirar a sua capacidade de se manter à tona da água, mesmo quando algum dos batráquios que habitavam o lago viesse pôr em perigo a fragilidade das suas folhas. Dona Quitéria transmitia uma felicidade triste desde que recebera a carta acompanhada daquela chave que lhe abriria a porta para um segredo que, agora, não queria conhecer. Toda a vida tinha procurado desvendar o mistério que rodeava o seu falecido e, agora que tinha essa possibilidade, percebeu que os segredos só valem enquanto se mantiverem secretos. Nessa manhã, olhou mais uma vez os nenúfares e, antes de se levantar, deixou cair lentamente a chave nas águas do lago.
Francisco Feio


Dona Quitéria subia a Rua da Madalena com a carta na mão. Há muitos anos não chegava em casa tão tarde. Normalmente, às três da manhã já estava em sono profundo. Mas não naquela madrugada.
Parou diante da porta do seu prédio. Olhou para o outro lado da rua e irritou-se mais uma vez com o símbolo ridículo do hotel recém-inaugurado, que havia desalojado dezenas de antigos moradores da rua. Que relação poderia haver entre aquele desenho estilizado de um nenúfar com o restante da fachada do edifício? Porque diabos um hotel na baixa pombalina havia de se chamar Nenúfar. Suspirou, desconsolada.
Procurou a chave de casa na bolsa. Subiu lentamente as escadas e entrou no pequeno apartamento, fechando e trancando com cuidado a porta atrás de si. Deixou-se cair na poltrona, exausta.
Tirou a carta do envelope e leu novamente as revelações estarrecedoras que ela continha. Toda sua felicidade fora construída em cima de uma mentira. E todos os envolvidos naquela história suja estavam mortas. Menos ela. Lembrou-se do verso da canção que o seu falecido marido, um brasileiro que ela agora descobrira ser um farsante, gostava de cantarolar: Tristeza não tem fim, felicidade sim.
Paulo Lima

D. Quitéria há muito que não dormia bem. Ora era o vizinho surdo que não baixava o volume do televisor, ora era o gato que teimava em miar a meio da noite.
Numa dessas madrugadas decidiu escrever uma carta, por se sentir tão triste naquela noite tão fria, tão negra e tão só. 
Decidiu escrever à Elisabete a perguntar pelos nenúfares que ela tinha no seu grande jardim, cheio de cores, orvalho e natureza.
No meio dessas palavras pensou que lhe deveria contar esse segredo que tanto a atormentava, dia após dia. E escreveu essa amálgama de acontecimentos, palavra a palavra, sentindo no fim de tudo, um grande alívio e felicidade por ter partilhado, ainda que no papel, que tinha herdado a casa da Tia Maria na Rua da Madalena.
Enquanto escrevia entretinha-se com a chave, ora a tilintar, ora a passar-lhe por entre os dedos.
Iria mudar-se finalmente para a cidade, deixando este cafofo no interior do país.
Mariana Matias

D. Quitéria levanta-se de madrugada, gosta de cumprimentar a Aurora e sente-se triste quando falha a esse encontro matinal com a mitologia. Dar-lhe-ia também Febo os bons dias?
Com uma velha chave enferrujada, abre a caixa de correio onde há anos não chega uma única carta. Logo desce a Rua da Madalena, deambula por Rossio e Restauradores, sobe a Avenida e o Parque e vai banhar a vista e a alma nos melancólicos nenúfares da outrossim melancólica Estufa Fria.
É esse o singelo segredo para o seu irrisório pedaço de felicidade diária.
José António Santos




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