26.10.19

PIRATARIA I



Sessão: 26 de Outubro
TEMA: PIRATARIA
Intertexto, pastiche, homenagens. Escrever a partir dos textos de outros.

Parte I: pilhagem

O processo: textos inspirados ou escritos a partir trechos copiados, recortados, pilhados de vários livros. Nuns casos, ligando os excertos com texto próprio, noutros, nem por isso.




Solstício

Havia um rasto de folhagem danificada que descia. Quanto mais pensava naquela situação, mais assustada focava. Sim, estava metida em tudo aquilo. Até ao pescoço. Havia as pequenas contas luminosas a que chamavam “pérolas de fogo”, mas não eram pérolas e não ardiam.
Minutos…
Segundos…
Que foi que eu fiz?
Nunca iria conhecer o seu filho, mas não tinha de pedir desculpas a quem quer que fosse pela forma como se movimentava através do Espaço-Tempo normal. O pequeno compartimento só tinha espaço para duas pessoas. Como já não havia necessidade de segredos, estavam ligados. As únicas pessoas que os podiam escutar estavam mortas há meio milhão de anos sem sequer uma palavra escrita deixada para dizer o que andavam a fazer. Tinham impregnado todo o nosso mundo. Eram tudo perguntas e não muitas respostas. Nós nem sequer sabíamos como se chamavam. Contudo, havia um afrouxamento das tensões, um alívio que surge quando uma viagem está no fim.

Disse-lhe para continuar. Um anel ardente em volta do seu corpo já era visível. Nunca se saberia se há alternativa. Posso estar errada, mas eu sabia: não havia. Podia admitir estragar tudo em outros aspetos, mas voltava a fazer-te cair no abismo.
Francisco Feio



Viagem

Um barulho estranho fez-me abrir os olhos. Quatro homens encapuzados entraram pela sala
adentro. Fiquei petrificada. O meu grito entalou-se na garganta. Fui manietada, amordaçada e
metida numa limusina. Não sabia para onde me levavam, nem o que poderiam querer de mim.
Entretanto, ouvi alguém dizer:
“A dor é tudo.
A dor é tudo o que há.
Toma um pouco da minha, querida,
Suga um pouco da dele. Sim, a dor é tudo” …
E depois foi o encontro e a atracação. A nave estremeceu de novo – fortemente. Portanto, o
encontro completara-se. A Delta Orionis e a Epsilon Sextans, os seus propulsores sincronizados, unidos pelos cabos da nave salvadora, caíam agora como um só através das imensidades negras. O encontro completara-se – e os sobreviventes estavam agora a ser trazidos para bordo e ajudados a sair dos seus malcheirosos fatos espaciais para contarem a sua história a Craven e aos seus oficiais. Grimes podia também imaginar isso, quase tão claramente como com os seus próprios olhos. Os engenheiros deviam estar agora a invadir os destroços, com equipamento de soldadura, aproveitando a chaparia não essencial das estruturas da nave para tapar os rombos. Continuaram à espera. Compuseram à vez a cabeleira ou o cabelo, endireitaram as rendas do pescoço e dos punhos, a gravata e a casaca. E voltaram a olhar para fora. O sol mudara já de posição, deixando de iluminar a câmara.

Livros utilizados: Como folhas ao vento, Emília Leitão; Reflexos do futuro, Col. Argonauta, Missão de vingança, A. Bertram Chandler, Col. Argonauta e Um príncipe quase perfeito, Maria João da Câmara
Rute Gonçalves



A guerra cria um outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam as nossas vidas. Já não são as colheitas, as fomes, as inundações. A guerra instala o ciclo do sangue. Passamos a dizer antes da guerra, depois da guerra. A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes.
 Assim é com a guerra como com a doença. É inaugurado um novo tempo – o corredor da morte. Vamo-nos despedindo aos poucos de um mundo que nos passa a ser indiferente, na sua sede de dinheiro, na sua ambição e ódio cego, na sua voragem e até nos seus constantes fracassos.
Sim, até o eterno fracasso nos passa a ser indiferente. É a paz da última hora que nos chama, a quietação do ocaso da alma, o esfumar-se no vazio, o calarem-se definitivamente todas as bocas.
 A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto.

Textos utilizados: A Varanda do Frangipani, Mia Couto, citado em Momentos de Aqui, Ondjaki; verso de Fernando Pessoa. 
Helena Campos





O anfiteatro encheu-se de mais uma das minhas sonoras gargalhadas. Muitos desejavam saber porque assim ria, mas não tiveram sorte. Ficaram-se pela cogitação.
Reuni os amigos e todos sentimos imediatamente um pequeno impulso. Estava a funcionar. Sorrimo-nos todos uns para os outros e eu fui ao meu cacifo buscar a garrafa de champanhe que reservara para a ocasião… Rodei a chave, mas não consegui abrir a porta. João acenava-me ao longe enquanto o meu sorriso desmaiava.
Bolas, logo uma garrafa tão cara! Tenho de controlar os meus impulsos nas compras de Natal! Especialmente, no El Corte Inglès. A chave entortou. Como pude ser tão estúpida? Ah, já sei, foi quando a usei para tirar as pilhas do comando do computador. E agora, o que é que eu faço?
— Sílvia, querida. Porque é que ficaste assim? — interrogavam-me os meus amigos. Seja o que for, procuramos outra solução!
Endireitei a chave e recuperei-a de um puxão. Subimos a rua dos Duques de Bragança e dirigimo-nos ao Bairro Alto.

— Oh, Sílvia, por esta é que não esperávamos! Até sevilhanas dançaste! Queremos mais serões assim — comentou o Filipe Calado em final de festa, já muito alegre. Concordam, malta? 

Textos utilizados: D. Teresa de Távora de Sara Rodi, Reflexos do Futuro de Bruce Sterling
Lídia Vieira





Toda a gente perguntava, mas ninguém sabia quando é que o rapaz ostra saía.
Podia lidar com a simples deslocação dos objectos. e o seu pé se transformasse numa gabardina e o cimo fosse o baixo, estava bem dentro da sua tolerância do caos. Podia suportar até certo ponto uma mistura do tempo. Mas não podia aceitar o facto de um sentido trocado por outro, do tempo repetido e entrelaçado de forma a que os paradoxos se encontrassem profundamente enterrados.
Dentro da sua cabeça não havia doces nem presentes; só umas quantas baratas de tamanhos diferentes.
Sentia-se hipnotizado, pedido num vago e perturbante sono em que o Passado, o Presente e o Futuro estavam inextricavelmente misturados.
As palavras saíam-lhe agora de uma forma quase natural.
- Penso – respondeu lentamente.  – Interrogo-me sobre uma série de coisas. Nada faz sentido, e por isso, ao fim de algum tempo, deixamos simplesmente de pensar. Calculamos que de qualquer forma, não iremos compreender a resposta.
Partiu enfim. E a sua memória perdeu-se numa maré cheia.

Livros utilizados:  Missão de vingança, A. Bertram Chandler, Col. Argonauta, Fumos de Sonho - I, Tricia Sullivan, Col. Argonauta, A Morte Melancólica do Rapaz Ostra, Tim Burton

Cristina Borges










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