7.12.19

UM TEXTO NO SAPATINHO





Sessão 7 Dezembro: Um texto no sapatinho - Histórias com espírito de Natal

Um baralho de cartas com palavras de Natal e um Presépio em branco foram os pontos de partida para os textos da sessão.





História de José
José era um poeta que esperava desesperadamente a sua musa numa noite de Natal.
Olhava para as crianças mas a musa não vinha com elas
Olhava para as estrelas mas as estrelas não brilhavam para ele
Olhava para um peru inútil a tostar no forno velho e umas couves duras e secas
Olhava para um pinheiro frondoso de onde pendiam bolas coloridas e farrapos de neve inutilmente
Invejava o calor humano que derretia aquele Inverno pesado de águas
Já não descia o Pai - Natal pela chaminé como nas memórias dos tempos de antanho
Era um coração oposto ao mundo como diria o Pessoa


Há noites da alma que nem a noite de Natal consegue iluminar.
                                                                                                                                 Helena Campos


Desde os primórdios do tempo, quando o principio era o verbo e o verbo era a luz, estava marcado que em certa noite, a estrela maior surgiria refulgente sobre a cidade de David e conduziria três reis à encarnação de Deus feito Homem, o tão aguardado Messias, que traria a Boa Nova aos povos e a salvação à Humanidade.
A estrela ensonada, porém, perdeu-se no firmamento e pontilhou sobre vários pontos do planeta , hesitante sobre em que ponto deveria reverberar.
Mas afinal onde nasceria o Messias que ela deveria sinalizar com um banho de luz?
Foi numa estrada deserta, algures na Ásia menor, a norte do velho Nilo, a oeste das imponentes pirâmides, que localizou três homens trajados com faustosas roupas e imponentes coroas, montados em camelos, numa grande altercação por causa de um nome.
Que se chamava Melchior, não, que era Belchior, porque Melchior não constava do dicionário, que já o grande Homero dizia que não, que até remontava à República de Platão e figurava na ardida Biblioteca de Alexandria.
Que não interessava como é que se chamava, interessava que encontrassem a estrela que os dirigisse à encarnação do Messias, esse sim acima de todos os outros.
Um pobre pastor, assombrado com tamanha discussão entre tão nobres viajantes, simplesmente apontou a estrela aos reis e a apontou a manjedoura à estrela e esta pode finalmente iluminar a noite mais bela da História e os reis ajoelharam-se comovidos diante de Deus feito Homem na candura de um menino.
                                                                                                                                 Helena Campos



Palavras: bacalhau, barbas, branco, Reis Magos, lareira, bolo-rei, burro

Olhou em volta, franziu o sobrolho e pensou com os seus botões “mas porque é que eu ainda me meto nisto? É sempre a mesma coisa…” A fila para a caixa era gigantesca e as pessoas estavam como que sob o efeito de drogas, de olhos brilhantes, esgazeadas, com os seus carros a abarrotar de bacalhau, de bolo-rei e de outras tantas iguarias. “Véspera de Natal e eu no supermercado… Mas que burro! É que todos os anos é a mesma coisa. Eu quero lá saber do Pai Natal e das suas barbas brancas, dos Reis Magos ou do Menino Jesus. Só quero que este dia acabe, para eu me sentar em paz, em frente à lareira e tentar esquecer que é Natal.
                                                                                                                                    Rute Gonçalves

História de Baltazar
- Mas ainda falta muito para chegar? Ò Belchior tu disseste que se chegava lá num instante…
Belchior olhou para trás e sorriu – está quase – e apontou para a estrela que vinham a seguir há já vários dias. Baltazar abanou a cabeça, incrédulo. Estava montado em cina do camelo há tanto tempo, a dormir mal, a comer mal, a cheirar mal, e ainda por cima tinha de carregar a mirra. Já lhe doía tudo e, mais a mais, já não ia para novo.
-Mas quem é esta criança para termos de fazer este sacrifício todo?
- É um Príncipe – respondeu Gaspar.
“Pronto, então se é um Príncipe é capaz de valer a pena – pensou Baltazar. Certamente quando lá chegarmos termos um bela cama no palácio, uma farta refeição à nossa espera e, quem sabe, uma recompensa em ouro”. Animou-se com este pensamento e continuou. Depois de vários dias e várias noites de caminho, finalmente chegaram ao seu destino. Pararam em frente a um estábulo despido, gelado, com um burro e uma vaca escanzelados e um casal com ar de fome. Na manjedoura estava uma criança, nua sob uma coberta esfarrapada.
- “Cá está o nosso Príncipe” – gritou Belchior em êxtase.
- “Mas já chegámos? – Respondeu Baltazar, sem perceber nada. Então o Príncipe está na manjedoura? Se eu soubesse que era para isto não tinha vindo. Ó Belchior, da próxima não contes comigo.
                                                                                                                                Rute Gonçalves


História de Gaspar

Seguia as estrelas Gaspar
Na noite tão fria
Trazendo no peito um júbilo intenso
E pensando em Jesus, sem medo, sorria
E sonhava acordado em dar-lhe o incenso.

                                                                                                                                Rute Gonçalves



José

Há 25 dias que decorria o último mês do ano, mas já andavam em viagem há quase outros tantos. Raio de mês que escolheram para isto, pensava José. Belém era particularmente fria nesta altura do ano. José enfiou o barrete mais fundo na cabeça, não tanto para afastar o frio, mas como se se estivesse a punir por toda esta história em que involuntariamente se viu metido.
Maria tentava dormir, apesar das dores que se faziam sentir cada vez mais fortes e menos espaçadas. A última vela ardia indiferente a todo este cenário e em breve ficariam às escuras. Só um milagre o poderia animar.
                                                                                                                                    Francisco Feio



A vaca

Matilde olhava à sua volta a morder displicentemente uma palha seca, já que o tempo não estava para ir lá fora procurar algo mais interessante para comer. Com a azáfama dos últimos dias, ninguém prestava atenção a uma simples vaca, embora a casa fosse dela e eles terem irrompido por ali dentro como se fosse tudo deles. Ainda assim, não os criticava já que a vida social num estábulo de Belém não era propriamente uma primeira escolha para ninguém. Por isso, ter uma festa desta dimensão em casa era um acontecimento que lhe animava o espírito e punha a sua casa na boca do mundo. Mais uma ruminadela e o encanto esmoreceu quando percebeu que a realeza desapareceria tão depressa quanto tinha chegado, o casal levaria a criança, a estrela deixaria de estrelar e o estábulo voltaria ao encanto que têm os estábulos que, como se sabe, não interessam nem à vaca do presépio.
                                                                                                                                         Francisco Feio

 Maria em três Haikus

Manhã anunciada
Um anjo mudo
Uma criança no ventre

Uma trombeta no céu
Folha caída
O ato consumado

Do anjo mensageiro
À dor do choro
O filho de deus homem
                                                                                                                  Francisco Feio



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